Protestos derrubam governo no Cazaquistão e abrem novo desafio para Putin

País está em estado de emergência, e o premiê renunciou com seu gabinete

Folhapress Folhapress -
Vladimir Putin. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O país mais conhecido no Ocidente como sendo a terra de Borat, o repórter ficcional criado pelo humorista britânico Sacha Baron Cohen, vive uma convulsão inédita que ameaça a estabilidade da Ásia Central e abre uma nova frente de crise para o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Nesta quarta (5), manifestantes atacaram prédios públicos e protestaram nas principais cidades do Cazaquistão, incluindo a maior delas, Almati, e a capital, Nur-Sultan. A residência oficial do presidente do país, Kassim-Jomar Tokaiev, foi invadida. O país está em estado de emergência, e o premiê renunciou com seu gabinete.

A queixa nas ruas é contra o preço dos combustíveis, mas tudo indica que a onda de protestos saiu de controle –o famoso “não são só R$ 0,20” dos atos de julho de 2013 no Brasil.

A renúncia do gabinete, orquestrada por Tokaiev, não parece ter surtido muito efeito, embora seja difícil aferir as notícias que emergem em redes sociais e na mídia altamente controlada pelo governo ditatorial da antiga república soviética.

Os atos começaram no domingo (2), na região de Mangistau, onde o GLP (gás liquefeito de petróleo) é o principal combustível de veículos. Na terça (4), eles se alastraram para a maior cidade, Almati, e por todas as áreas do país –batendo em Nur-Sultan.

Houve repressão policial, em escala ainda incerta já que houve um certo alívio no setor nos últimos anos, segundo agências internacionais. Em Almati, há relato de que prédios públicos foram incendiados, divulgados por blogueiros na internet. Houve, segundo a prefeitura da cidade, 190 feridos e ao menos 200 prisões.

Tudo começou porque o governo liberou os preços do GLP no começo do ano, pegando no contrapé os motoristas que haviam convertido seus carros para rodar com o combustível devido a seu baixo custo em relação à gasolina e ao diesel.

Agora, Tokaiev disse que reverterá a medida, embora siga sendo incógnito o efeito de qualquer fala sua. Aí que o problema transborda as fronteiras do grande país, que com um território equivalente a 1/3 do brasileiro domina a Ásia Central.

A primeira mesa em que o abacaxi é depositado é a de Vladimir Putin. O presidente russo, às voltas com a grave crise na qual posicionou tropas para pressionar a Otan a aceitar um acordo que impeça a adesão da Ucrânia ao clube militar ocidental, agora vê o aliado em apuros.

Não é algo incomum. Em 2020, Putin foi ao socorro do governo aliado de outra nação ex-soviética da região, o remoto Quirguistão, que enfrentou protestos. Fez o mesmo em relação à mais importante Belarus, na prática subordinando a ditadura de Aleksandr Lukachenko a seu comando político, e mediou um frágil acordo de paz que encerrou a guerra entre Armênia e Azerbaijão.

Por fim, enfrentou um governo pró-Ocidente na Moldova, onde tem interesses e tropas em um território autônom o vizinho, a Transnístria.

Olhando no mapa, todos esses são pontos de transição entre fronteiras russas e os adversários, que antes eram parte do controle de Moscou, seja sob os czares, seja sob o Partido Comunista. Isso explica a obsessão de Putin em manter a estabilidade e a influência nesses locais, perdidos com a desintegração soviética de 1991.

O Kremlin se manifestou, dizendo que espera uma resolução rápida da crise por Tokaiev. O autocrata é um aliado recente e visto como marionete do ditador Nursultan Nazarbaiev, que comandou o Cazaquistão por quase 30 anos.

Em 2019, desgastado por protestos de rua, o ditador passou o cargo para o protegido, mas manteve um posto de “pai da nação” e chefe do influente Conselho de Segurança, com amplos poderes. Com 81 anos, ainda não falou na crise.

Sua sucessão foi vista inclusive como um modelo para Putin quando o russo decidiu mudar a Constituição em 2020, mas ele preferiu deixar em aberto a possibilidade de concorrer a mandatos que podem durar até 2036.

A relação de Putin com o Cazaquistão, contudo, não é de todo rósea. Em 2014, o presidente sugeriu que o país existia por um “presente do povo russo”. Moscou tem no país sua principal base de lançamento de foguetes espaciais, em Baikonur.

E há a questão chinesa. O gigante a leste é a maior potência econômica regional, e fez movimentos de expansão rumo ao Cazaquistão que desagradaram ao Kremlin, integrando o país ao seu projeto de integração de infraestrutura Iniciativa Cinturão e Rota.

De seu lado, Nur-Sultan aproveitou essa disputa para tentar manter uma posição de relativa independência, equilibrando-se entre ambas as potências e ainda cortejando o Estados Unidos, rivais de ambas.

Empresas americanas são líderes entre estrangeiros na exploração do subsolo rico em petróleo e gás do país, responsáveis por 30% da extração em 2019 –ante 17% de firmas chinesas e só 3%, de russas. Desde 2003, para desgosto do Kremlin, o país faz exercícios militares anuais não só com Moscou, mas com a Otan.

Apesar disso, o fluxo de comércio com os americanos ainda é incomparável, dez vezes menor do que os cerca de US$ 19 bilhões registrados entre os cazaques e a Rússia e os US$ 21 bilhões com a China.

Sob a ótica chinesa, a instabilidade é indesejada por outro motivo. O Cazaquistão faz fronteira a leste com a região de maioria muçulmana de Xinjiang, onde os chineses são acusados de genocídio pelos EUA.

Aqui, o jogo diplomático fica evidente. O governo cazaque não aceita as acusações ocidentais, mas também não assina cartas de apoio à China como faz a Rússia. Com efeito, Nur-Sultan é um crítico das sanções americanas e europeias contra Putin pela anexação da Crimeia em 2014, mas não reconhece o território como russo.

“Tokaiev é a encarnação desse curso de ação: ele é um sinologista que estudou no prestigioso MGIMO (o Instituto Rio Branco da Rússia) e forjou sua carreira diplomática na ONU”, escreveu o analista uzbeque Temur Umarov, analista do Centro Carnegie de Moscou.

Como em todas as crises na antiga periferia soviética, há fatores de influência externa sendo ponderados por Moscou. Mas também a realidade: a inflação está em 9%, a maior em cinco anos, e os juros subiram recentemente a 9,75%. E a internet aumentou o drible à imprensa estatal, elevando a comunicação entre jovens ativistas.

Para o resto do mundo, a instabilidade poderá ter algum efeito na já complexa composição dos preços de petróleo (o país tem a 15ª reserva do planeta) e do gás (12ª reserva), mas a implicação principal agora é geopolítica.

Com a atabalhoada retirada americana do Afeganistão, no ano passado, a Ásia Central vive um momento incerto –elementos radicais islamistas existem em toda a região. Nem Putin, nem Xi, ora em franca aproximação para enfrentar o Ocidente, deverão deixar a situação explodir sem algum tipo de intervenção política. Em 2021, eles já operaram em torno da crise afegã que viu a volta do Talibã ao poder.

Por disposição e temperamento, a tarefa deverá caber ao russo, o que será comemorado nas mesas de negociações entre o Kremlin e a Otan sobre a crise na Ucrânia, na semana que vem.

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