Conflito na Colômbia foi contra civis, não guerra civil, diz chefe de Comissão da Verdade

Volumoso relatório conta grande parte dos crimes contra a humanidade cometidos na luta armada no país

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(Foto: Flickr)

SYLVIA COLOMBO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Uma das determinações mais esperadas do acordo de paz assinado entre o Estado colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em 2016 foi concluída no final de junho, com direito a promessas do presidente eleito Gustavo Petro. “Recebo as recomendações da Comissão da Verdade e as cumprirei. Até a última família, no último canto do país, conhecerá essa história e suas recomendações.”

Presidida pelo sacerdote jesuíta Francisco de Roux, a Comissão se propôs a recontar a história de cinco décadas de violência na Colômbia a partir dos relatos das vítimas. A equipe realizou mais de 30 mil entrevistas e construiu uma plataforma que pode ser consultada por região, data e tipo de ocorrência –muitos relatos estão anônimos, para que as vítimas não possam ser identificadas por seus agressores.

O volumoso relatório conta grande parte dos crimes contra a humanidade cometidos na luta armada no país, que envolvem torturas, sequestros, recrutamento de menores, violências sexuais e atentados à população camponesa e urbana.

O documento considera que há 9 milhões de colombianos vítimas da violência e lista 450.666 mortos no conflito armado, mais que o dobro das estimativas anteriores. O trabalho é independente dos tribunais de paz, e suas informações não poderão ser usadas para fins jurídicos.

Na entrega do texto, De Roux afirmou que a reconciliação do país é urgente e que conhecer essa verdade será um primeiro passo. “Gastaríamos 17 anos se fôssemos fazer um minuto de silêncio para cada vítima. Não podemos perder mais tempo.”

 

PERGUNTA – O senhor sai satisfeito com o relatório final da Comissão da Verdade?

FRANCISCO DE ROUX – Muito, porque foi possível escutar as vítimas. A verdade que surge desse trabalho não é uma verdade acadêmica, é construída a partir da dor das vítimas. Além disso, pudemos refletir e propor soluções para a não repetição da violência.

 

O sr. é de Cali, região de muitos conflitos. Pessoalmente, dentre as revelações, o que o tocou mais?

F.R. – Eu tinha conhecimento da violência, por toda uma vida dedicada a acompanhar o conflito. Mas nunca tinha sentido a profundidade da tragédia humana no interior. A forma como crianças foram levadas para a guerra à força e tiveram a vida destruída. Me doeu ver como os corpos das mulheres se transformaram em campos de guerra. E a dor de indígenas e comunidades afrodescendentes.

Também o volume e o modo dos sequestros. No período que estudamos houve mais de 50 mil sequestrados, vários por muitos meses ou anos, na floresta, em condições terríveis. Por fim, ficou claro para mim que o que houve na Colômbia não foi uma guerra civil, mas uma guerra contra os civis. De cada 10 vítimas, 8 eram civis. Não se pode colocar as coisas numa balança de modo equitativo.

 

Que recomendações para a não repetição do conflito o sr. destacaria?

F.R. – Em primeiro lugar é necessário um esforço sério de implementação do acordo de paz, partindo de seu artigo mais importante, o da reforma rural, para que o campesinato seja valorizado e possa sair das difíceis condições em que vive e que o fazem partícipe ou vítima das facções criminosas. Temos que mudar o modo como pensamos o Estado, precisamos de uma transformação cultural para uma convivência harmônica entre os colombianos.

Também creio que é necessário mudar o modo como pensamos a segurança. Ela não pode ser baseada em armas, e sim organizada de modo coletivo. A polícia tem de sair da ingerência das Forças Armadas e ser composta por cidadãos e cidadãs. Não pode ser que tenhamos 7 milhões de colombianos deslocados de casa, nas periferias, usurpados pelas guerrilhas, pelo paramilitarismo ou pelo crime organizado.

Não podemos perder de vista que a segurança é para os seres humanos antes de ser para as terras. Com mais acompanhamento humano, precisaremos de menos armas.

 

Hoje a paz tem como maior obstáculo o narcotráfico.

F.R. – A guerra ao narcotráfico já deu mostras há muito tempo que é impossível de ser vencida. Pior, ela dá mais lucro ao narcotráfico. Caímos nessa armadilha da visão dos EUA, de que o tráfico de drogas de vence com guerra e não adiantou nada –seguimos produzindo e vendendo mais drogas que antes.

 

Indígenas e outros defensores das florestas estão sendo assassinados na Colômbia e no Brasil. O que o relatório nos diz sobre os crimes contra a natureza e a Amazônia, que os países compartilham?

F.R. – Nós temos de mudar completamente a maneira de enfrentar as coisas. Entender que a vida de um indígena é mais importante que qualquer indústria de soja, de gado, multinacional. Uma empresa é um negócio, e negócios se ajustam com dinheiro, mas o valor de um ser humano é absoluto. Destruir e deixar que sejam destruídos a floresta e esses povos é torpe e antiético.

Quando o Brasil ataca sua população indígena, a dignidade de todos os brasileiros é atacada –e o mesmo ocorre do lado colombiano. O cuidado com a natureza, entre todos, deve ser um lugar de proteção, de honra. Avançar sobre a selva é uma estupidez, um crime suicida.

 

Raio-X

Francisco de Roux, 79

Nascido em 5 de julho de 1943, estudou filosofia, letras e teologia na Universidade Javeriana de Bogotá. Ordenou-se sacerdote em 1975, fez mestrado em economia na Universidade dos Andes, deu aulas na London School of Economics e fez doutorado em economia na Sorbonne. Trabalhou no Programa pela Paz da Companhia de Jesus e no Centro de Investigação e de Educação Popular, além de ter participado dos acordos de 2016.

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