Vacinação contra Covid escancara diferenças na África e nos lusófonos do continente

Mesmo com doses doadas ao continente, somente 15% da população africana completou o primeiro esquema vacinal

Folhapress Folhapress -
Vacinação. (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

MAYARA PAIXÃO
GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) – Pouco mais de um ano após o início da vacinação contra a Covid, a distribuição de doses na África segue como pauta de debate em fóruns internacionais. Afinal, com doses doadas ao continente majoritariamente nos últimos cinco meses –muitas com prazo de validade curto– e problemas de armazenamento, somente 15% da população africana completou o primeiro esquema vacinal.

Entre os 54 países do continente, porém, há diferenças, e uma delas está nos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe têm índices de imunização acima do regional e estão entre os mais vacinados, embora possuam um emaranhado de desafios domésticos no combate à doença.

Por trás disso estão diversas razões, e algumas delas pedem uma visita à história local. A começar pelo êxito diplomático que tiveram os lusófonos africanos.

Boa parte das doses aplicadas nessas nações veio de China, Rússia e Portugal, diz o angolano Filomeno Fortes, diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade Nova de Lisboa. “O negacionismo também não teve grande peso, e foi possível uma grande mobilização social por parte dos governos”, explica.

À reportagem, o Ministério do Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal informou que 2,7 milhões de vacinas haviam sido doadas para os Palop até o final de fevereiro, seja por acordos bilaterais ou por meio do consórcio internacional Covax. O principal destino foi Angola, maior lusófono africano em termos de população –pelo menos 1,8 milhão de vacinas de Lisboa desembarcaram no país.

As cifras, no entanto, não foram capazes de estancar o atraso vacinal. Fortes diz que mesmo os Palop terão dificuldade em alcançar a meta global de mais de 70% de vacinados. Cabo Verde poderá atingir 70% de cobertura, enquanto Moçambique e São Tomé e Príncipe devem estagnar em torno de 45%, e Angola pode chegar aos 30%, estima. “A expectativa é de que a Covid se transforme em mais uma endemia com pequenos surtos até que venha a imunidade natural.”

As causas para o problema vão além da dificuldade de aquisição de vacinas. A ela, somam-se o fato de muitas das doses doadas –ao menos 1 milhão, de acordo com Fortes– terem prazo de validade muito curto; a escassa capacidade de armazenamento do imunizante em baixas temperaturas; os grandes fluxos migratórios nessas nações; e sistemas de saúde com capacidade reduzida de cobertura.

Esses entraves também são relatados por Joana de Morais, diretora-geral do Instituto Nacional de Saúde Pública de Angola, país com 17,6% de vacinados. Ela menciona inúmeros casos de doações internacionais cujas vacinas tinham prazo de validade para expirar em um ou dois meses –o que tornava quase impossível fazer o imunizante chegar a zonas de difícil acesso. “Ninguém olhou para isso. Faltaram solidariedade e compreensão do contexto angolano.”

Na lista de desafios, a biomédica inclui ainda o baixo letramento em saúde da população –o que teria corroborado para a disseminação de teorias conspiratórias– as dificuldades na cadeia logística e a insuficiente campanha de comunicação promovida pelas autoridades.

Houve, ainda, a percepção de que a Covid não era o problema mais latente, o que se deve à existência de doenças transmissíveis, como malária e tuberculose, em muitos dos Palop. “A pandemia veio diminuir a capacidade de testagem, diagnóstico e tratamento destas doenças; com exceção de Cabo Verde, ocorreu diminuição nas coberturas vacinais contra a poliomielite, sarampo, tétano, difteria, coqueluche, BCG e febre amarela nos Palop”, relata Filomeno Fortes.

Ponto fora da curva nesse sentido, o arquipélago de Cabo Verde consolidou-se como o Palop mais vacinado e o quinto país africano mais imunizado, atrás de Seychelles, Maurício, Marrocos e Ruanda. Pelo menos 54,6% da população recebeu duas doses, porcentagem que, em grande parte, deve-se às diferenças históricas que marcam o país em comparação com os demais lusófonos.

Considerado um bom exemplo no combate à pandemia, o país viu o número de casos explodir no final de dezembro, justamente quando reaquecia o setor do turismo, responsável por um quarto do PIB.

A presidente do Instituto Nacional de Saúde Pública Cabo Verde, Maria da Luz Lima, porém, atribui o recente surto à interrupção do uso obrigatório de máscaras e ao grande fluxo de visita de cabo-verdianos que vivem em outros países, não às atividades turísticas. Segundo ela, muitos familiares levaram para os parentes falsas teorias sobre o imunizante, algo que nunca teve grande enraizamento no arquipélago.

Lima diz que a nova onda pôde ser controlada –agora o país registra média de menos 20 casos de Covid por dia– devido ao histórico do que já vinha sendo feito na área da saúde. E menciona o que descreve como “isolamento institucional” ainda na primeira fase da doença, quando os contaminados foram isolados em hotéis e escolas, longe das famílias, o que possibilitou achatar já no início as cifras da Covid.

Há motivos para a mais bem-sucedida campanha vacinal cabo-verdiana, e eles são reflexo do fato de que mesmo os Palop são marcados por diferenças estruturais entre si. Com um processo de colonização e um pós-independência diferenciados, o país de 550 mil habitantes já iniciou a pandemia com um sistema de saúde mais estruturado, fruto de uma administração pública robusta.

“Cabo Verde sempre foi visto pela metrópole [Portugal] como um criador de quadros administrativos que foram cooptados e fizeram parte da administração de países como Angola e Guiné-Bissau”, explica Leila Leite Hernandez, professora de história da África na USP.

“Durante a independência, não houve escangalhamento do aparato administrativo, marcado pela burocracia colonial portuguesa, como houve em outras ex-colônias, de modo que Cabo Verde era o único país com quadro administrativo”, segue.

Assim, explica Hernandez, autora de livros sobre o arquipélago, um terreno favorável foi criado para que, no pós-independência, houvesse uma modernização acelerada da parte administrativa, com especial empenho nos setores de educação e saúde, este último fundamental frente à crise sanitária observada nos últimos três anos.

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