Enfermeira que ‘adotou’ familiares da boate Kiss inspira programa de traumas do SUS

Enfermeira concursada pela Secretaria de Município da Saúde de Santa Maria desde 2011, Patrícia tem especialização com ênfase em saúde mental

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Santa Maria (RS) – O incêndio da Boate Kiss, o segundo maior do país em número de vítimas – 242 mortos – (Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil)

(FOLHAPRESS) – A enfermeira Patrícia Bueno, 36, foi uma das primeiras profissionais da saúde a chegar à boate Kiss na madrugada do incêndio que acabou com a vida de 242 jovens, em Santa Maria (RS), em 2013. Mais de nove anos depois, ela mantém contato com boa parte dos familiares das vítimas e acompanhou, ao lado deles, todas as fases da ação judicial e do julgamento que culminou na condenação de quatro acusados em dezembro de 2021.

Ligações e mensagens trocadas no Natal e no Dia dos Pais ou das Mães são hábito comum, mas principalmente no dia 27 de janeiro, data do fatídico episódio que Patrícia diz ter deixado marcas profundas em sua vida também, apesar de não ter conhecido nenhuma vítima.

Mas não é só em datas específicas que a enfermeira fala com aqueles a quem chama de “meus xodós”. “Criei laço de amizade mais profundo com ao menos dez famílias, de ir na casa deles falar da vida. Foi uma relação de carinho que surgiu de grande trauma.”

Enfermeira concursada pela Secretaria de Município da Saúde de Santa Maria desde 2011, Patrícia tem especialização com ênfase em saúde mental. Atualmente, ela trabalha na estratégia da família de um posto da cidade.
Da madrugada do incêndio em diante, Patrícia passou a dedicar parte de sua vida a aqueles pais em desespero trabalhando por horas, após seu expediente na prefeitura, no segundo andar do CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) onde voluntários, entre enfermeiros, psicólogos e médicos, ofereciam atendimento 24 horas por dia.

A profissional relata como foi a ajuda aos familiares concentrados no Centro Desportivo Municipal, o Farrezão, onde estavam os corpos. “Demos suporte psicológico e clínico, inclusive com eletrocardiograma. Evitávamos ministrar medicação para eles viverem o momento de luto. Mas muitos pais surtaram, não aguentavam a dor”, afirma a servidora municipal.

Com o passar dos meses, o que menos Patrícia fez foi seu trabalho de enfermeira. “Passei a dar abraços, apoio e a escutá-los. Saia a enfermeira e entrava o ser humano para acolher.”

Para a dona de casa Marise Dias de Oliveira, 58, Patrícia virou referência até para a vacinação contra a Covid-19. “Ela esteve 99% conosco. A presença dela foi marcante para mim e meu marido. Eu amo a Patrícia, ela é maravilhosa”, afirma Marise, que perdeu o único filho, Lucas Dias de Oliveira, de 20 anos.

Como funcionária da prefeitura, Patrícia prestou atendimento aos familiares por seis meses. Depois desse período, ela voltou a trabalhar exclusivamente na saúde geral do município. Mas ela não conseguiu deixar de dar apoio àqueles com quem conviveu nos piores momentos de suas vidas.

Alguns parentes se uniram e formaram, ainda em 2013, a AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) para exigir a apuração das causas que levaram ao evento trágico e a responsabilização dos envolvidos.

Manifestações passaram a ser rotina na cidade no dia 27 de cada mês para exigir justiça. Uns protestavam contra as autoridades, a quem muitos culpavam pelo incêndio. Patrícia, claro, estava lá nesses momentos também.

Mas a presença de uma funcionária da prefeitura despertou desconfiança, em especial do militar reformado Sérgio da Silva, 58, que perdeu o filho Augusto Sérgio Krauspenhar da Silva, que tinha 20 anos e estudava direito.

“No começo esse pessoal [da saúde] sofreu na nossa mão, porque estávamos revoltados, eu estava transtornado. Entendíamos que a Patrícia, como funcionária da prefeitura, não era bem-vinda.”

Mas Silva relata a transformação no relacionamento. “Mesmo quando éramos arredios, ela se manteve ao nosso lado, assim como outros profissionais da equipe, que sempre nos trataram com muito carinho”, diz o militar reformado, presidente da AVTSM entre 2015 e 2019.

Ele admite que demorou três anos para confiar em Patrícia. “Ela entendia nossa revolta e abriu mão de tudo para cuidar da gente. Quando a conhecemos melhor, relaxamos. Hoje, ela é minha camarada, minha amiga, é a Paty. Ela é tudo para mim e para minha família”, afirma Silva, que recentemente se mudou de Santa Maria para Santa Catarina.

Patrícia também acompanhou o processo judicial desde o início até os dez dias do julgamento. “Levávamos nosso suporte psicológico, mas também medidores de pressão e oxímetros, porque houve crises de ansiedade e muitas lágrimas.”

Para o psicanalista Volnei Dassoler, que até o ano passado era o coordenador do programa Santa Maria Acolhe, de atendimento às vítimas da boate Kiss, o trabalho de Patrícia foi extraordinário.

“Ela é a figura emblemática no atendimento psicossocial. Trabalhou desde o início do Acolhe e fez o acompanhamento das famílias ao longo dos anos.”

Improviso virou serviço do SUS

Um trabalho que começou de improviso diante da grande catástrofe no interior do Rio Grande do Sul passou a ser de acolhimento exclusivo aos familiares das vítimas e aos 636 sobreviventes. Após seis meses, tornou-se um serviço integrado ao SUS.

Ali nascia o programa Acolhe Santa Maria, que passou a atender pacientes com grandes traumas, não relacionados ao incêndio. “A Kiss foi um desastre de altas proporções. Santa Maria não estava estruturada para receber as consequências desse tipo de acontecimento. Foram criadas inúmeras ações”, afirma Dassoler.

O psicanalista explica que o atendimento com voluntários aconteceu nos dois meses com a supervisão da prefeitura. Mas a partir daí, segundo ele, percebeu-se que houve um impacto na cidade e se chegou à conclusão de que o serviço deveria ser mantido.

Ele notou movimento de pessoas que tinham seus dramas particulares não acolhidos pela rede de saúde. “Elas passavam por sofrimento agudo e seus casos não eram o perfil do CAPs. Faltava esse tipo de assistência.”
O psicanalista conta que foi feito contrato emergencial e criou-se o Acolhe Saúde, atual Santa Maria Acolhe. “Foi um programa construído entre o município e a associação dos pais e vítimas.”

O Acolhe virou referência em outras tragédias, como o acidente de avião da Chapecoense, que matou 71 em 2016. “Ficamos cinco dias na cidade prestando apoio à equipe que atendia os familiares”, conta Patrícia, que fez parte da equipe com Dassoler.

O Acolhe também deu apoio, a distância, para profissionais que atenderam vítimas do rompimento da barragem em Mariana (MG), em 2015, que deixou 18 mortos e um desaparecido.

Em 2014, Patrícia, a equipe e alguns familiares da Kiss estiveram em Buenos Aires, Argentina, quando completaram-se dez anos do incêndio na boate República Cromagnon, que deixou 194 mortos, desastre que começou de forma similar ao de Santa Maria, quando músicos soltaram fogos de artifício.

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