Má gestão do ‘lixão’ de Anápolis está destruindo a vida da família de Dona Rosana

Portal 6 inicia série de reportagem sobre a situação do aterro sanitário do município

Karina Ribeiro Karina Ribeiro -
Imagem mostra Dona Rosana na propriedade que faz divisa com o Aterro Sanitário. (Foto: Elvis Diovanny)

Dona Rosana Teixeira, de 57 anos, é uma mistura de força e fragilidade. A união de palavras tão distintas cabe em poucas histórias de vida e, em geral, que não são fáceis de serem vividas – ou, neste caso, – narradas.

Tendo o aterro sanitário de Anápolis nos fundos da propriedade de quase dois alqueires comprada há 23 anos, ela não seria capaz de imaginar como a vida iria passar por uma transformação intensa nos últimos anos.

O ponto de partida foi quando viu maquinários gigantescos, em 2019, começarem a mudar o cenário do fundo da terra em que ela, com olho no retrovisor, ainda chama de paraíso. Na urgência por respostas, bateu na porta da Secretaria de Meio Ambiente e a informação foi de que teria de sucumbir ao empreendimento – pelo bem do município.

Só que atualmente, todas e quaisquer referências ao local, são faladas em verbos com conjugações no passado. A sensação da equipe de reportagem do Portal 6 que esteve no local na última semana é de que o paraíso de dona Rosana, bem vivido com familiares e registrado em fotos com sorrisos abertos em plena integração com a natureza – virou um cenário de total degradação.

 

Imagem mostra represa onde crianças pescavam e, agora, está totalmente seca. Foto: (Arquivo Pessoal/Portal 6)

Imagem mostra local onde passava nascente de um córrego e, atualmente, local está próximo de onde é depositado dejetos. (Montagem: Arquivo Pessoal/Portal 6)

A história de Dona Rosana já foi contada aqui. Assim, o Portal 6 está desenvolvendo uma série de reportagens em contato com órgãos fiscalizadores, empresa e especialistas sanitários. O que dá para adiantar é de que há indícios de que algumas normas técnicas não vêm sendo seguidas à risca pela Quebec, empresa que opera o local, inclusive, de forma irregular – sem licença ambiental.

Uma das camadas desse drama familiar é como um ‘sistema’ pode, sem aviso prévio, mudar a vida de pessoas por um bem considerado maior sem nem mesmo dar a chance deles recomeçarem em outro ponto.

Conforme Rosana, nunca foi proposto uma indenização para que ela buscasse outro cantinho para tocar os anos que lhes restam – contando com o marido e as filhas. Essas últimas, sem suportar as consequências do vizinho indesejado, se mudaram para Brasília.

“É o sonho de uma vida inteira. Criávamos galinhas, porcos, gado, tínhamos uma represa com peixes. Fazíamos festas e reuníamos a família. Éramos muito felizes”, disse engasgada num choro que tentou conter.

A força de dona Rosana vem da perseverança das buscas não só pelo direito de indenização, mas também pelo entendimento de preservação ambiental que, em geral, são mais delineados naqueles que andam lado a lado com a troca de experiências com a biodiversidade.

Imagem mostra local onde eram realizadas festas e reuniões e que, nos atuais, está desativado em função do odor e presença de vetores. (Montagem: Arquivo Pessoal)

Ela ainda se questiona o que pode ter feito ao longo da vida para pagar sozinha este ‘pato’. Neste caso, urubus – aves que de tanta quantidade tomam conta dos céu, terras e empobrecem e destroem a mata da região – que será mais detalhado na próxima reportagem.

“Se disseram que é para o bem de Anápolis, e o meu? Quem vai olhar por mim? Ao mesmo tempo que quero sair daqui, porque não tem outro jeito, não gostaria que isso aqui [região] acabasse. Não queria o ‘lixão’ aqui. E a mata? E as minas d’água que estão todas secando?”, desabafa numa tentativa de ser notada.

O que ronda a mente de dona Rosana, a preocupação com o outro e o futuro da região, aparentemente, é o que alguns responsáveis foram incapazes de fazer – ao gaguejar, usar a burocracia como muleta ou fugir das responsabilidades ao não encarar o problema de frente.

Rede de apoio

Desamparada pelos órgãos públicos, a proprietária rural tem uma rede de pessoas que, ligadas pela afinidade e interesses comuns, também se cercam do medo do desconhecido.

Enquanto ela, admissão feita pelos vizinhos, é a que mais sofre com a situação, atualmente também é a própria bastião entre o presente e um futuro próximo.

“Se nada for feito, hoje é na terra dela. Amanhã poderá ser na minha e nas das pessoas ao redor”, diz o dono de terras na região há mais de 25 anos, cujo nome não será revelado.

Inclusive, pesou para o conhecido de dona Rosana não se identificar para a reportagem. Ponderou o medo de represálias ‘de pessoas que considera más e perigosas’ e resolveu não se arriscar. Entretanto, se emocionou.

“Conheço essa área antes mesmo dela vir para cá [Rosana]. Era tudo agricultável e virou um cemitério”, lamentou.

Saúde

Neila Francisco do Carmo, moradora do Jardim Primavera, bairro próximo ao aterro sanitário, revela outra nuance também considerada grave.  “Na noite em que eles colocam fogo o bairro fica todo enfumaçado, com cheiro de lixo queimando….Moscas varejeiras tinham aos montes dentro de casa esses dias, grudadas até na cerca elétrica”.

De quebra, Neila sofre de asma. Ela conta que, em dias assim, precisa recalibrar a quantidade de medicamentos que, apesar de fazê-la se sentir melhor – pesam no bolso. “Eu quase morro de falta de ar. O cheiro é insuportável. Eu tenho que comprar antialérgico e meu remédio de asma é caríssimo, já que é uso contínuo”, diz.

“Eu só vivo no médico com meu filho”, diz Cleonice também moradora rural nas adjacências. Vítima de alergias severas, uma das recomendações médicas era para que o adolescente não tivesse contato com odores fortes – conforme Cleonice, para não acarretar maus piores.

“Vamos ter de sair daqui, o mau cheiro é muito forte, a presença dos urubus e da moscas deixa tudo aqui insuportável”, diz.

Em meio a tudo isso, ainda há um centro educacional muito próximo ao aterro. São mais de 200 crianças e adolescentes que convivem diariamente com essa rotina. A ‘briga’ que começa na cozinha com as mais diversas técnicas para afugentar as moscas, termina em casa.

“Muitos sentem náusea, dor de cabeça, mal-estar e acabam precisando ir para casa. Não temos o que fazer”, diz a gestora da unidade, Márcia Bueno.

Márcia revela que o odor costuma piorar no início da manhã e final de tarde. Uma observação também é feita por todos os entrevistados – o mau cheiro intensifica muito quando chove.

No segundo relato desta série, o Portal 6 vai explicar algumas normas técnicas que os aterros sanitários devem seguir, além de mostrar que há indícios de que o local não vem cumprindo as regras a rigor da lei. No mais, será explanado os possíveis danos à saúde humana e ao meio ambiente.

O Portal 6 entrou em contato com a Prefeitura de Anápolis e a Quebec Ambiental com uma série de questionamentos a respeito do manejo e gestão do local. Enquanto a prefeitura manteve-se calada a empresa respondeu todos as perguntas conforme serão apontados abaixo.


Em qual situação está a busca por regularização para o manejo do Aterro Sanitário em relação à licença ambiental junto a SEMAD?

A licença ambiental para o Aterro Sanitário de Anápolis está ativa. O aterro está dividido em duas etapas. Uma fase operacional que engloba o maciço 1, o antigo lixão e o aterro de inertes; e a fase 2, que inclui o maciço 2 atualmente em operação.

A renovação da licença de funcionamento do aterro foi solicitada e estava em tramitação na SEMAD desde 2021. A Prefeitura Municipal, junto com a Quebec, tem buscado desde então responder todas as solicitações para a renovação.

Em 2023, uma nova notificação foi emitida pela SEMAD. Porém, não foi encaminhada para o município, sendo que este só obteve conhecimento quando o processo já havia sido migrado para o Sistema Ipê (novo sistema de licenciamento).

Diante disto e somando a necessidade de ampliação do aterro, foi recentemente elaborado um Termo de Compromisso Ambiental. Ele mantém ativa a licença do aterro até a execução de todas as condicionantes propostas no documento, conforme os prazos preestabelecidos.

Portanto, a licença do aterro está ativa e agora estamos na fase de elaboração dos estudos e documentos técnicos exigidos.

Por que a Quebec perdeu a licença ambiental?

A licença ambiental do aterro sanitário é de titularidade da Prefeitura Municipal de Anápolis, e não da Quebec Ambiental. A empresa, como operadora do aterro, tem como compromisso manter ativa as condicionantes da licença.

Porém a responsabilidade de manutenção da documentação junto a SEMAD é da Prefeitura, o que de forma colaborativa, é também efetivada pela Quebec.

Além disso, é importante ressalvar novamente que não houve perda de licença. Todas as providencias devidas para resolver as notificações e ajustes para o novo Sistema Ipê estão sendo providenciadas.

A empresa faz o manejo para mitigar a presença de vetores e urubus dentro das normas e prazos estabelecidos? Considerando a questão de fazer a cobertura com terra nos materiais a cada 24 horas.

A presença de vetores em aterros sanitários é talvez um dos maiores desafios a serem mitigados, assim como em qualquer atividade industrial que trabalha com material orgânico. O cheiro característico dessa matéria prima atrai os animais para dentro da área do aterro, independente de se fazer a cobertura diária do resíduo ou não.

Confinar o material reduz a incidência do odor característico. Mas ele se mantém em vários outros pontos, como no caminhão de coleta e nas máquinas de compactação. Somada a sensibilidade olfativa dos animais, torna a gestão de vetores bastante complexa.

Diversas ações são tomadas pela Quebec Ambiental no aterro de Anápolis e nas demais regiões de sua atuação para esse controle, como o cercamento da área (que impede a entrada de animais terrestres), o cinturão verde (que reduz a percepção do cheiro pelos animais), o uso de espanta-pássaros (fogos de artifícios com ruídos) e a cobertura do resíduo.

É notório observar, que é esperado encontrar, especialmente, urubus em áreas de aterro sanitário, tendo em vista a característica olfativa desse animal, sendo por vezes as medidas utilizadas insuficientes para a retirada completa deles, todo o tempo.

Ressalta-se ainda que:

1 – a área do aterro sanitário é extensa. Portanto, medidas como replantio, controle de crescimento das espécies do cinturão e manutenção do cercamento é realizada de forma contínua.

2 – Em épocas de chuvas, como a que estamos encerrando agora, a prática de cobertura dos resíduos é mais difícil, pelo fato do material estar molhado e não permitir uma compactação adequada e reduzir sobremaneira a capacidade de movimentação das máquinas.

3 – A área de trabalho não deve ser coberta (para permitir a decomposição), apenas as áreas finalizadas e com compactação, assim, sempre haverá uma frente de serviço controlada, com resíduo descoberto.

Esclarecemos ainda que, apesar da cobertura dos resíduos com terra ser a medida mitigadora mais difundida entre a população, para se obter uma decomposição adequada, e, portanto, controlar a emissão dos gases e chorume, essa prática não pode ser realizada de forma indiscriminada.

Deve-se considerar a quantidade de orgânicos recebidos, o tipo de solo, o clima do local no momento (especialmente umidade e evaporação) e a umidade do solo. Assim, apenas cobrir com solo, por si só, além de não ser uma medida eficiente para o controle de vetores ainda pode gerar outros impactos significativos.

Qual o posicionamento da empresa em relação à observação de especialistas de que há indícios que o solo e o lençol freático estejam contaminados?

Como apresentado no próprio Relatório de Assessoramento Externo, contratado pela SEMAD para análise do processo em 2022, nos monitoramentos de águas subterrâneas as alterações encontradas nas análises foram consideradas inconclusivas, dado a proximidade com a Estação de Tratamento de Esgoto.

O órgão solicitou a troca de metodologia de análise das águas para tentar aferir a real interferência da operação do aterro na qualidade das águas. Porém, os resultados comparativos destas para 2023 e 2024 ainda estão sendo executados e são condições para a manutenção do licenciamento.

Os proprietários rurais vizinhos ao aterro estão seguros ao consumirem água de poço artesiano no local, no que diz respeito a atividade da empresa?

A depender da gestão de efluentes do aterro, sim. O fato de o solo funcionar como um filtro biológico reduz ainda mais a ocorrência de contaminação por materiais em decomposição e metais pesados.

Porém, ressalta-se que um poço artesiano sofre interferências de diversas outras atividades existentes no uso do solo da região. Como a estação de tratamento de efluentes, fossas negras ou fossas sépticas inadequadas, criação de suínos e aves, dentre outros.

Assim, a seguridade do consumo depende de várias ações muito além da operação do aterro.

Recebemos uma denúncia de ex-funcionário que trabalhou por anos na empresa, falando que o chorume é lançado em cima dos platôs de resíduos sólidos. Isso procede? O que gostariam de comentar sobre?

A utilização da recirculação do chorume é uma prática desejada em aterros sanitários, especialmente em regiões com estações secas. É uma forma de conter o líquido gerado na decomposição dos resíduos orgânicos, no local do próprio aterro, internalizando as externalidades de suas atividades, reduzindo o risco de contaminação das águas superficiais.

No caso do Aterro de Anápolis, as lagoas existentes são suficientes para armazenar o chorume gerado em épocas chuvosas. Então, é realizado o manejo dentro do próprio local, entre as lagoas com maior e menor geração, de forma que todas estejam no mesmo nível.

Em dias de umidade baixa, é realizada a recirculação do chorume para os maciços, que estão devidamente impermeabilizados com manda PEAD. O líquido é gotejado nas vias de acessos e nas frentes de serviço (somente em local impermeabilizado) para controle de poeira, e na compactação dos resíduos, o que aumenta sobremaneira a eficiência de compactação e decomposição. E, portanto, a vida útil do aterro.

Importante lembrar que, caso não fosse utilizado o chorume para recirculação, teria que se utilizar água de poço artesiano para essa umidificação das vias e do resíduo, retirando do meio ambiente um recurso limpo, transformando-o em chorume.

Assim, a recirculação de chorume, uma vez realizada de forma correta e controlada, é uma medida sustentável na gestão de aterros sanitários.

Ainda dentro da denúncia que recebemos, foi dito que existe um sério risco de explosão, já que diminuiu o número de ductos de pedras para escoar o gás metano. Como se encontra esse cenário?

A Quebec Ambiental iniciou as suas atividades no Aterro Sanitário de Anápolis em 2020, já com o primeiro maciço, praticamente encerrado. É frequentemente realizada vistoria no maciço 1, anterior a operação da Quebec, para monitoramento, e observado que todos os drenos estão operantes, não havendo riscos de explosão.

No maciço em operação, desde a entrada da Quebec, todos os drenos estão operacionais, tanto de chorume como os de biogás, sendo realizados a queima do gás controlada com flare.

Ressalta-se um dos quesitos condicionantes da ampliação do aterro é a amostragem de gases, que deve ser realizada até o mês que vem. Com os laudos será possível indicar uma modelagem de dispersão de poluentes e evidenciado o controle em relação a explosões e dissipação de contaminantes.

 

 

Ver essa foto no Instagram

 

Uma publicação compartilhada por Portal 6 (@portal6noticias)

 

Ver essa foto no Instagram

 

Uma publicação compartilhada por Portal 6 (@portal6noticias)

Você tem WhatsApp ou Telegram? É só entrar em um dos grupos do Portal 6 para receber, em primeira mão, nossas principais notícias e reportagens. Basta clicar aqui e escolher.

PublicidadePublicidade

+ Notícias