Relatos comoventes de mulheres negras em Goiânia que sofrem as dores da hipersexualização

Postura não parte apenas de homens brancos e socióloga explica como os resquícios da escravidão no Brasil maximizam o problema

Gabriella Pinheiro Gabriella Pinheiro -
Mulheres negras. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo)

As abordagens e convites de cunho sexual aliados às dificuldades de serem vistas como potenciais opções para um relacionamento sério trazem à tona um dos vieses do racismo estrutural que atinge mulheres autodeclaradas negras e expõem estereótipos hipersexualizados atribuídos a elas.

Compreendido como um processo de objetificação e redução a uma imagem de sexo fácil, corpos volumosos e cheios de curvas, a visão erotizada é uma das dores que afligem, por exemplo, a moradora de Goiânia e supervisora de CRC Fabrícia Gonçalves – nome fictício -, que atribui à estigmatização da cor de pele um dos empecilhos para engatar uma relação amorosa.

Hoje, com 38 anos, ela reflete que o fenômeno multifacetado não é recente e a impacta desde a adolescência, de forma sutil, quando, aos 15 anos, era chamada para ‘ficadas’ com rapazes, enquanto amigas brancas recebiam convites para sair e até pedidos de namoro.

“Eu era invisível. Eu era a amiga, a amiga dos meninos. Sempre tive muita facilidade em fazer amizade, mas eu sempre fui a amiga. Nunca fui a mulher que chamava a atenção. Os meninos queriam ficar comigo, mas eles não namoravam comigo. […] Eu sentia que as pessoas gostavam de mim, mas no quesito de me assumir, de andar de mão dada comigo e tudo, não acontecia”, reflete.

O mesmo dilema a acompanhou e se intensificou na vida adulta. Mesmo quando a química batia ou o papo ia bem, Fabrícia afirma esbarrar na mesma tecla e, por várias vezes, escutou uma frase que diz já ter decorado quando um homem, subitamente, rompia a relação para namorar com outra – quase sempre branca: “Você é a mulher perfeita, mas aconteceu”.

” Eu conhecia pessoas que eu achava que estavam sendo legais e, do nada, a gente estava ficando e aí o cara começava a namorar, mas me procurava ainda para ficar comigo. […] Nesse caso, a gente vê que, para apresentar para a sociedade, eu não servia”, afirma.

Com uma história semelhante, a chefe de cozinha e produtora cultura, também da capital, apelidada de Juh Ribeiro, de 46 anos, revela sentir os efeitos na pele desde nova. À reportagem, ela afirma que, por volta dos 16 anos, já recebia convites de homens para “ficar às escondidas”, o que nunca foi aceito por ela.

Já adulta, situações desse tipo continuaram ocorrendo. Numa delas, por exemplo, Juh afirma já ter vivenciado um momento em que um antigo namorado demonstrou ter vergonha de ser visto em público ao lado dela.

“Nessa vida adulta, ou o ‘cabra’ te olha a noite toda, mas não chega até você e vai chegar em uma branca, e isso é natural. Em nós [negras] ele vai chegar no final da noite. Teve uma vez que eu comecei a ter um relacionamento com um rapaz novo e branco, eu percebi que em casa ia tudo bem, mas na hora de sair ele não pegava na minha mão e logo não durou muito e eu terminei a relação”, relembra.

Mesmo aos 23 anos, Maria Cecília – nome fictício – também destaca as dores que a visão objetificada causa na vivência. Assim como as outras, convites resumidos a sexo casual, encontros às escondidas e em horários menos visados aconteciam de forma recorrente.

“Eu tinha uma amiga branca, minha melhor amiga, e nós andávamos juntas o tempo todo. Ela era branca, com cabelo liso, e os meninos adoravam chamá-la para ir ao cinema, levar chocolate e tudo. Eu nunca recebi uma cesta de chocolate e achava que ‘Ah, é porque eu sou feia’, mas eu nunca pensei ‘Ah, é porque eu sou negra’. […] Comigo era só assim: ‘Vamos lá em casa depois da aula’, ‘Você não quer passar lá em casa?’, ‘Você não quer sair para a gente ir a um lugar mais discreto?’. Essas propostas eram muito recorrentes”, diz.

Tanto Fabrícia quanto Juh também refletem que a postura não é exclusiva de homens brancos e, inclusive, alegam já terem se sentido sexualizadas por homens negros.

O que explica?

Para a psicóloga, pedagoga e especialista em Ensino Interdisciplinar sobre Infância e Direitos Humanos, Anna Karollina, a visão é uma mistura entre o processo de escravidão ocorrido no Brasil e o sexismo, que coopera para a criação de um “lugar de superexploração e subalternização” das mulheres negras, em que o corpo é visto sob a perspectiva de servir ao outro.

“Se é um ‘corpo que serve’, a ideia é que ele precise aguentar tudo. Então ele pode aguentar assédio moral no trabalho, ele pode aguentar violências dentro da família. [..] Às vezes é um caminho muito árduo para a pessoa pensar: ‘Isso aqui que eu passei foi racismo’”, destaca.

Psicóloga, pedagoga e especialista em Ensino Interdisciplinar sobre Infância e Direitos Humanos, Anna Karollina. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ela reflete ainda a noção de perspectiva de beleza que, conforme a especialista, parte de um ideal de branquitude, em que características como traços mais finos e cabelos lisos são considerados os mais “atraentes”, principalmente na perspectiva feminina.

“Ainda que isso não apareça diretamente, que a pessoa não perceba de uma maneira tão evidente, a sociedade se estrutura a partir dessa visão. […] Embora as pessoas procurem a psicologia como uma maneira de aplacar esse sofrimento, muitas ainda estão passando por isso e não entendem que isso é algo abusivo e que é uma violência”, diz.

Por fim, Anna orienta que vítimas desse tipo de visão devem procurar ajuda e buscar verbalizar os sentimentos a fim de evitar adoecimentos físico, mental, psíquico e psicológico – além de reforçar que é necessária uma transformação na sociedade.

“Você não vai passar por isso só uma vez; talvez você passe por isso todas as vezes que andar na rua, todas as vezes que pegar o ônibus, todas as vezes que for ao clube, todas as vezes que entrar na faculdade. Talvez você passe por isso muitas vezes. Então, de fato, o que a gente precisa é de uma transformação maior. Não é a gente que tem que ressignificar; é a sociedade que precisa ser diferente”, conclui.

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