Lei que proíbe ‘ideologia de gênero’ na Flórida expõe nova batalha cultural dos EUA

Críticos defendem que ela irá marginalizar ainda mais crianças e adolescentes que se identificam como gays, lésbicas ou transgênero

Folhapress Folhapress -

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Flórida se tornou o centro da mais recente batalha cultural nos Estados Unidos: a educação sexual nas escolas. Uma lei que proíbe escolas de incentivar a discussão sobre orientação sexual e identidade de gênero foi aprovada no Comitê de Educação do Senado estadual nesta terça-feira (9).

O texto, apelidado pelos críticos de “Don’t Say Gay” (não diga gay), bane o tema nos anos primários, geralmente de 7 a 11 anos. Também prevê restrições quando o assunto for abordado “de uma forma que não seja apropriada para a idade ou para o desenvolvimento dos estudantes”, ainda que não detalhe o que seria considerado uma idade ou um desenvolvimento apropriados. Uma versão quase idêntica já havia sido apresentada há cerca de um mês na Câmara dos Deputados da Flórida.

Na noite desta segunda (8), o presidente dos EUA, Joe Biden, escreveu em seu Twitter que a administração federal irá “continuar a lutar pelas proteções e segurança” que a comunidade LGBTQIA+ merece. “Quero que cada membro da comunidade LGBT -especialmente as crianças que serão impactadas por essa lei detestável– saiba que você é amado e aceito como você é.”

A conta oficial da Casa Branca também fez uma publicação dizendo que os “políticos conservadores da Flórida encaminharam uma legislação desenhada para atacar crianças LGBT”.

O posicionamento difere do adotado pelo ex-presidente Donald Trump, e, em um ano de mandato, Biden já reverteu medidas como a que proibia militares transexuais de servirem nas Forças Armadas dos EUA. Além de uma série de pronunciamentos e de nomeações de pessoas abertamente LGBT a cargos importantes no governo americano, o democrata também assinou decretos para ampliar a proteção contra a discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero, e suas pastas de Justiça e Educação também têm atuado nesse sentido.

Projetos de lei como o da Flórida, que limitam as discussões sobre diversidade com as crianças, têm se multiplicado nos EUA, expondo uma guerra cultural que divide o país. No Brasil, o tema também é recorrente entre conservadores, como o próprio presidente Jair Bolsonaro (PL).

Esses grupos se opõem às discussões de gênero, vistas por eles como um ataque orquestrado por militantes da esquerda marxista ao conceito tradicional de família. Eles defendem o seu posicionamento como um combate ao que chamam de “ideologia de gênero”.

Na Flórida, críticos da lei defendem que, se aprovada, ela irá marginalizar ainda mais crianças e adolescentes que se identificam como gays, lésbicas ou transgênero. “Isso vai matar as crianças”, escreveu em sua rede social Chasten Buttigieg, marido do secretário de Transportes, Pete Buttigieg. Ele cita um estudo do Projeto Trevor que aponta que 42% dos jovens LGBT pensaram seriamente sobre suicídio em 2021.

Buttigieg foi o primeiro pré-candidato à Presidência dos EUA a assumir abertamente sua sexualidade. Ele participou da disputa pelo Partido Democrata. Antes disso, governou South Bend, cidade de 100 mil habitantes no estado de Indiana, de 2012 a 2020.

A psicóloga infantil Natasha Poulopoulos, que atua em Miami, explica que falar desses temas em um ambiente de tolerância reduz o número de tentativas de suicídio. A partir dos 7 anos, as crianças podem ter “uma ideia bastante clara de sua identidade de gênero”. Assim, proibir a discussão no meio escolar “apenas as colocaria mais dentro do armário”, disse a especialista à AFP.

“A ideia não é incentivar as crianças a falar de sexo, mas dar a oportunidade de refletir sobre como se sentem e que saibam que podem falar [sobre o tema] se quiserem”, ressalta a psicóloga.

Já para os defensores da lei, entre eles o próprio governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, o texto não tem nada de discriminatório e a discussão sobre gênero e sexualidade deveria ser feita em casa, não na escola. “Trata-se de permitir que os pais criem seus filhos e tenham voz e voto sobre o que acontece com eles”, disse à AFP Tina Descovich, da organização Moms for Liberty, que diz lutar pela “sobrevivência da América” ao empoderar pais a defenderem os direitos parentais.

Citando o exemplo de uma mulher que descobriu que sua filha de 13 anos tinha participado de reuniões na escola sobre sua identidade de gênero, durante as quais falaram sobre a possibilidade de usar o banheiro masculino, Descovich protesta que “isso não é normal”.

Além da Flórida, o assunto já tomou conta de outros estados. Na Califórnia, uma mãe abriu processos contra as autoridades do condado onde seus filhos frequentam a escola. Ela acusa duas professoras de terem incentivado sua filha, então na sexta série (cerca de 13 anos), a usar um nome masculino. A mãe também recrimina as docentes por a terem excluído das discussões. Não está claro se a adolescente em questão se identifica como uma pessoa transgênero, isto é, alguém que não se identifica com o sexo que lhe foi atribuído no nascimento.

A Associação de Professores da Califórnia, por sua vez, manifestou preocupação por um ambiente em que forças políticas externas buscam dividir pais, professores e escolas.

Projetos similares já surgiram também em estados como Arizona, Indiana e Oklahoma. Eles variam entre a obrigação dos professores de avisar os pais caso o aluno fale sobre sua sexualidade, obter permissão dos responsáveis antes de falar sobre orientação sexual e proibir, nas bibliotecas das escolas, livros que falem de “preferência sexual” e “identidade de gênero”.

Ativistas LGBT lembram que, no fim da década de 1980, o país viveu uma ofensiva similar, quando a Aids era uma epidemia. As autoridades se viram, então, obrigadas a estabelecer cursos de educação sexual sobre o HIV. Na época, porém, os conservadores garantiram que não se falaria sobre homossexualidade nas escolas por medo de uma suposta “doutrinação” das crianças.

 

Medidas de Biden pelos LGBTQIA+
27.out.21 – Passaporte não-binário
Departamento de Estado permitiu a emissão, a partir deste ano, de documentos de viagem que permitem o marcador X em gênero.
25.jun.21 – Memorial Nacional Pulse
Biden assinou lei para criação de memorial em homenagem às vítimas do massacre na boate gay Pulse, em Orlando, em 2016.
17.jun.21 – Departamento de Justiça questiona leis na Virgínia Ocidental e em Arkansas
Pasta desafiou leis estaduais que infringiam direitos de jovens transgênero, dizendo que o texto da Virgínia Ocidental violava a legislação federal e de Arkansas, a Constituição.
16.jun.21 – Departamento de Educação amplia entendimento de lei antidiscriminação
Pasta divulgou nova interpretação do Título 9, segundo o qual nenhuma pessoa nos EUA deve ser proibida de participar, ter direitos negados ou ser discriminada, por seu gênero, em programas educacionais ou atividades que recebam assistência financeira federal. Para o departamento, a lei se aplica a estudantes LGBT, o que reverte uma posição de Trump.
25.jan.21 – Permissão de militares transgênero
Biden reverteu medida de Trump que proibia pessoas transgênero de servirem nas Forças Armadas dos EUA.
20.jan.21
No primeiro dia no cargo, o presidente democrata assinou ordem executiva estendendo proteções contra discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero, reafirmando decisão da Suprema Corte.

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