MST chega aos 40 alterado, com desafio de renovação e sob cerco bolsonarista

Movimento surgiu em meio à mobilização de camponeses na CPT, órgão da ala progressista da Igreja Católica

Folhapress Folhapress -
MST chega aos 40 alterado, com desafio de renovação e sob cerco bolsonarista
Grupo participa de terceiro Congresso Nacional do MST, em 1995. (Foto: Débora Lerrer/Coletivo de Acervo e Memória MST)

SÃO PAULO, SP, BRASÍLIA, DF, E PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) completa 40 anos com objetivos e perspectivas diversas das que motivaram sua criação, um histórico de conflitos com fazendeiros, ruralistas e governos antagônicos, certa desilusão com o PT e desafios que incluem dificuldade de novos quadros, esvaziamento político e cerco bolsonarista.

Fundado durante um encontro nacional realizado de 21 a 24 de janeiro de 1984 em Cascavel (PR), o MST se tornou o movimento brasileiro pela reforma agrária mais famoso dentro e fora do país.

Protagonista de invasões de terras vistas por grupos de esquerda como instrumentos de pressão legítimos e, por grupos de direita, como violações violentas da propriedade privada, manteve-se no centro das atenções do embate político nestas últimas décadas.

Após atravessar a gestão Jair Bolsonaro sob ameaças (o ex-presidente defendia enquadrar as ações do grupo como terrorismo), teve estremecimento com o governo Lula 3 diante da ocupação de uma fazenda da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e foi pressionado por uma CPI na Câmara dos Deputados.

Embora carregue a fama, o MST é apenas um dos movimentos críticos da concentração fundiária. Diferenciou-se de outros pela capacidade de organização e a capilaridade. Presente em 25 estados, optou por não ter presidente e toma decisões de maneira colegiada.

Nesse período, destacaram-se João Pedro Stedile, 70, fundador e cabeça pensante do MST; José Rainha, 63, comandante carismático das invasões que terminou proscrito; e João Paulo Rodrigues, 44, principal figura da geração que nasceu e cresceu em assentamentos.

Foram eles que, em momentos e circunstâncias diferentes, tomaram a dianteira nas tratativas com os governos, que no período se dividiram entre oposição aberta (Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e Jair Bolsonaro), tímida aproximação (Itamar Franco) e alinhamento sujeito a turbulências (Lula e Dilma Rousseff).

O ápice das invasões do grupo ocorreu no fim do primeiro e começo do segundo mandato de FHC (PSDB), em 1998 e 1999, de acordo com os dados compilados anualmente pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT (Comissão Pastoral da Terra).

Foram quase 600 em cada um daqueles dois anos, além de ações em prédios públicos.

Em maio de 2000, o governo editou medida provisória que impediu a desapropriação de áreas invadidas, o que resultou em redução das ações do MST.

Com Lula no poder, a medida foi descartada e as ocupações voltaram a crescer, embora em número bem menor do que no período mais tenso sob FHC – que teve uma fazenda sua em Buritis (MG) invadida pelo MST em 2002. A média de ações nos dois primeiros mandatos de Lula, de 2003 a 2010, ficou em cerca de 350 ao ano.

Já sob Dilma (2011-2016) esse tipo de mobilização caiu para uma média de cerca de 215 ao ano, sob Temer (2016-2018) recuou para abaixo de 200, e atingiu seu menor índice sob Bolsonaro (2019-2022), com média de menos de 50 ocupações ao ano (o período coincidiu, em parte, com a pandemia da Covid-19).

Sob Lula 3, a CPT diz que só no primeiro semestre de 2023 ocorreram 71 ocupações de terras. Os dados do segundo semestre ainda não foram divulgados.

Embora alinhado, o PT foi por várias vezes alvo de críticas do MST, que se desiludiu logo nos primeiros anos de Lula 1 com a possibilidade de uma mudança radical na realidade fundiária brasileira.

“O governo do presidente Lula e da Dilma fez bastante, mas nós precisamos avançar. Precisamos colocar a reforma agrária no orçamento da União”, resume o deputado federal Marcon (PT-RS), militante e beneficiário da reforma agrária, morando até hoje no Assentamento Capela, em Nova Santa Rita (RS).

Na visão do deputado, os maiores desafios daqui para a frente são estruturar os assentamentos e dar perspectivas às novas gerações.

“Precisamos achar o que fazer com essa juventude. É agregar valor na produção, ter acompanhamento técnico, infraestrutura. Hoje, na metade dos nossos assentamentos no Rio Grande do Sul deveria ser feita uma estátua das famílias assentadas, pela forma [precária] como elas estão vivendo.”

Stedile afirma que a nova geração não tem a mesma “têmpera” do passado. “Já está mais acomodada. Já consegue entrar na universidade. Então, o jovem sem-terra ou assentado está mais vagaroso para as atividades militantes.”

O MST surgiu em meio à mobilização de camponeses na CPT, órgão da ala progressista da Igreja Católica. O ano, 1984, representava o estertor do regime militar.

O principal método sempre foi a invasão – ou ocupação, como reivindica o movimento e a CPT- de terras. A estratégia é pressionar os governos a assentar quem mora sob lonas (o MST diz que há hoje cerca de 70 mil famílias ainda acampadas).

Doze anos depois de sua criação, o MST viveu em 17 de abril de 1996 um de seus capítulos mais dramáticos, quando 19 trabalhadores sem-terra ligados ao movimento foram assassinados por policiais militares durante protesto em uma rodovia de Eldorado do Carajás (PA).

O caso teve grande repercussão nacional e internacional, o que acabou fortalecendo o nome do movimento.

A senadora Tereza Cristina (PP-MS), ministra da Agricultura no governo Bolsonaro e hoje uma das principais líderes do agronegócio no Congresso, afirma que o MST não soube se modernizar.

“Há 40 anos, até tinha sentido o trabalho que eles faziam. Nós tínhamos muita terra improdutiva no Brasil. Mas o MST ter hoje como o seu mantra, sua missão, invasão de propriedade está fora de época. Chamar atenção invadindo terra, isso para mim é inconcebível nos dias de hoje.”

A ex-ministra afirma que o movimento precisa se reinventar, lutando para que os assentamentos sejam produtivos, e rechaça as críticas do MST ao agro.

“Não existe esse agro mais. Eu até queria saber onde está esse agro improdutivo. Pode ter casos isolados, mas latifúndios, isso é uma coisa que ficou também no passado. Eu acho que o MST precisa olhar melhor e ver que o agro brasileiro é tecnificado, trabalhou e ficou independente do governo. É um setor que hoje sustenta a economia brasileira.”

Com a chegada do PT ao poder, a afinidade ideológica freou de certa forma a oposição barulhenta que dava fama ao MST, além de o Bolsa Família ter esvaziado adesões e aplacado demandas que inflavam o movimento.

Os números gerais da reforma agrária mostram que as desapropriações (47 milhões de hectares), assentamento de famílias (615 mil) e verbas discricionárias para ações no setor (R$ 16 bilhões em valores nominais, sem correção) encontraram seu ápice nos dois primeiros mandatos de Lula.

Todos esses indicadores começaram a declinar sob Dilma e caíram ainda mais, alguns simplesmente sendo paralisados, sob Temer e Bolsonaro.

Nos últimos anos, igrejas evangélicas avançaram também sobre os assentamentos. O bolsonarismo e os ruralistas mantêm o cerco sobre o MST nas redes sociais e no Congresso. Na gestão Bolsonaro, praticamente a única política para o setor foi promover uma entrega recorde de títulos de terra a assentados —vista como forma de esvaziar o movimento.

De acordo com dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em 2023, o primeiro ano de Lula 3, não houve decretos desapropriatórios editados, 51 mil hectares foram incorporados ao programa de reforma agrária, contra 34 mil no último ano de Bolsonaro, e 14 mil novas famílias foram assentadas, o dobro de 2022.

Já o orçamento discricionário do Incra, usado nas ações finalísticas da reforma agrária, foi o menor desde pelo menos 2003, R$ 300 milhões.

O sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília) Sérgio Sauer, estudioso de temas ligados aos movimentos agrários, cita cinco pontos que, em sua visão, exprimem a relevância do MST:

1) É um dos movimentos que materializam a saída de uma situação de restrições políticas para uma de organização social e popular no processo de redemocratização; 2) deu visibilidade nacional e internacional à situação de profunda desigualdade social, impunidade e violência no campo; 3) agregou à demanda por terra bandeiras como direito à educação e condições dignas de trabalho; 4) produziu reflexão política e teórica sobre a reforma agrária, e 5) incluiu o direito ao trabalho como uma das justificativas para o acesso à terra.

Ele vê na busca pela agroecologia a principal bandeira do MST no momento. O arroz orgânico plantado no Rio Grande do Sul é um exemplo. Embora em uma escala bem pequena em relação ao arroz tradicional, o MST é o maior produtor do país e da América Latina.

O professor e sociólogo Zander Navarro, também com ampla atuação acadêmica e profissional na área, avalia que o MST perdeu a sua razão de ser.

Ele considera que, sem o movimento, dificilmente teria ocorrido a ampla distribuição de terras entre a segunda metade dos anos 1990 e 2010 —e também vê papel do grupo na consciência política por parte das famílias mais pobres do campo. Mas afirma que a reforma agrária é uma política que, na medida em que é atingida, se esgota.

“A necessidade de uma reforma agrária deixou de existir porque a demanda social pelo acesso à terra praticamente se esgotou no Brasil. Então, é claro que, neste século, aos poucos e cada vez mais visivelmente, o MST perdeu sua razão de existir. Cumpriu o seu papel em grande medida. Temos que aplaudir. Isso foi muito importante, mas em uma bela hora terminou, é isso aí. É algo que no Brasil nenhuma autoridade teve a coragem de dizer.”

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