Em nova guerra à imprensa, Trump usa agência regulatória e restringe acesso da mídia crítica
Emissoras de TV e rádio estão sob investigação, e Casa Branca instruiu agência a encerrar "todos os contratos de mídia"
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PATRÍCIA CAMPOS MELLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na versão 2.0 de sua guerra contra a imprensa, o presidente Donald Trump ladra, mas também morde.
Em seu primeiro mandato (2017-2021), Trump frequentemente atacava jornalistas pelo nome e tachava a mídia de “inimiga do povo” e “fake news”, mas não chegava às vias de fato, em parte porque era brecado pelo Congresso ou pelo Judiciário. Agora, continua a investir contra repórteres nominalmente, mas vai além, perseguindo a mídia de forma concreta.
Emissoras de TV e rádio estão sob investigação, o governo promete cortar todas as assinaturas de veículos de mídia, parte da “mídia tradicional” perdeu o espaço físico de trabalho no Pentágono, e a Casa Branca vetou repórteres da Associated Press após a agência não adotar o novo nome do golfo do México, rebatizado de golfo da América em decreto de Trump.
O emissário especial de Trump para retaliação à imprensa é Brendan Carr, nomeado para presidir a Comissão Federal de Comunicações (FCC), agência encarregada de dar sinal verde a fusões e concessões de radiodifusão.
Carr abriu -ou reabriu- investigações contra emissoras de TV e rádio que fazem cobertura crítica do governo Trump. Na semana passada, os alvos foram a NPR e a PBS, a rádio e a TV públicas americanas, consideradas esquerdistas pelo republicano.
“Acho que a NPR e a PBS podem estar violando a lei federal ao veicular comerciais”, afirmou Carr, ao anunciar a investigação. Estações públicas de radiodifusão são proibidas de exibir comerciais. As empresas negam.
O chefe da FCC deixou claro aonde quer chegar. “Não vejo razão para o Congresso continuar financiando com dinheiro do contribuinte a NPR e a PBS”, disse.
Em seu primeiro mandato, Trump tentou acabar com a PBS, mas congressistas e a opinião pública se uniram para “salvar o Garibaldo” (a emissora transmitia a série infantil Vila Sésamo).
Carr também reabriu investigações que haviam sido encerradas no governo Biden sobre a CBS, ABC e NBC por coberturas que supostamente feriam o interesse público. A CBS é acusada de ter feito “distorção de notícias” na edição de uma entrevista da democrata Kamala Harris, em setembro, no programa 60 Minutes. Carr disse que o episódio pode influenciar a análise da FCC sobre uma fusão pendente entre a controladora da CBS, a Paramount Global, e a Skydance Media.
Os alvos mais recentes foram a NBC e sua controladora, a Comcast. Elas foram notificadas por Carr de que seriam investigadas por “promover formas de discriminação em violação das regulamentações da FCC e das leis de direitos civis” ao priorizar iniciativas de diversidade, equidade e inclusão, vedadas em decreto de Trump.
Já em relação à Fox, emissora alinhada a Trump, Carr optou por não reabrir a investigação pela cobertura sobre as denúncias falsas de fraude eleitoral em 2020. Na semana passada, a Fox anunciou que havia contratado a nora de Trump, Lara, casada com Eric Trump, para ser âncora de um programa aos sábados.
“Durante o primeiro mandato, Trump tentou conter a mídia crítica, mas em muitos casos não teve sucesso, porque foi impedido pelos tribunais, por defensores das instituições dentro de seu próprio governo e pela opinião pública”, disse à reportagem Joel Simon, diretor-fundador da Iniciativa de Proteção do Jornalismo da City University of New York (Cuny). “Desta vez, a burocracia está mais alinhada com sua agenda, os tribunais são mais favoráveis, e o poder da mídia de mobilizar a opinião pública é bem menor.”
Outro alvo de Trump é a saúde financeira dos veículos noticiosos. A Casa Branca instruiu a Administração de Serviços Gerais a encerrar “todos os contratos de mídia” custeados pela agência, de acordo com um email obtido pelo site Axios.
As assinaturas de sites de notícias fatalmente sucumbiriam à ofensiva de cortes de gastos do governo empreendida por Elon Musk. Trump promoveu em sua rede social, a Truth Social, a afirmação falsa de que agências governamentais haviam dado bilhões de dólares a empresas jornalísticas como “propina para veicularem histórias positivas sobre os democratas”.
Trump e Musk espalharam a afirmação falsa de que a Usaid, a agência de ajuda externa do governo que foi na prática fechada por Musk, dava US$ 8 milhões em subsídios ao site Politico, chamado pelo republicano de “tabloide de esquerda”. Na verdade, esse valor se referia a assinaturas do serviço Politico Pro para todo o governo americano.
A Reuters foi a vítima mais recente de campanha de fake news. Musk afirmou que a agência de notícias havia recebido US$ 9 milhões do Pentágono para “executar fraude social em grande escala”. Na realidade, a Thomson Reuters Special Services, empresa coligada que investiga ameaças cibernéticas, tinha sido contratada em 2018, durante o governo Trump, para fazer um estudo sobre como os EUA poderiam se defender de operações de influência (engenharia social). Trump exigiu que a agência devolva o dinheiro.
Tudo isso se dá ao mesmo tempo em que as esperanças de uma reedição do chamado “Trump bump” se frustram. Em 2016, o estilo turbulento do republicano de governar e sua geração incessante de factoides aumentaram a audiência dos veículos. Agora, essa abordagem está apenas sobrecarregando a imprensa, que sofre para conquistar a atenção dos leitores e espectadores. Na semana passada, as ações do The New York Times caíram 12% em um dia, após o jornal divulgar crescimento de assinantes abaixo da expectativa no último trimestre de 2024 e projeções mornas para este ano.
Outra diferença em relação a Trump 1 é a maior disposição dos veículos de imprensa de ceder à pressão. No ano passado, a ABC fechou um acordo e pagou US$ 15 milhões a Trump para encerrar uma ação em que o presidente acusava a emissora de difamação. Agora, a CBS estaria disposta a fazer o mesmo para encerrar o processo de Trump decorrente da entrevista de Kamala.
Segundo especialistas, estes seriam casos em que as emissoras venceriam facilmente na Justiça, de modo que elas não teriam por que fazer acertos. Nos EUA, é muito difícil uma pessoa pública vencer um processo de difamação contra um veículo de imprensa devido à proteção dada pela Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão.
Segundo Joel Simon, da Cuny, tudo isso ainda pode piorar caso Kash Patel seja confirmado como chefe do FBI. Em entrevista no ano passado, ele afirmou que usaria seu cargo no governo “para ir atrás das pessoas da mídia que mentiram e ajudaram Joe Biden a fraudar a eleição”.
Outro front é a restrição do acesso dos veículos críticos e maior abertura para podcasts e sites trumpistas. A AP teve repórteres barrados na Casa Branca após não adotar a expressão “Golfo da América”.
O Pentágono criou um esquema de rodízio no uso dos espaços físicos reservados para veículos de imprensa no ministério. Foram despejados The New York Times, NBC, Politico e NPR, que haviam sido especialmente críticos na cobertura do então indicado para secretário de Defesa, Pete Hegseth. Ganharam espaço One America News Network, Breitbart e o New York Post, todos alinhados ao governo, e o HuffPost-veículo progressista que nem sequer tem um repórter setorista de Pentágono e não havia pedido espaço.
O governo diz que a defesa da liberdade de expressão é uma de suas bandeiras. “A Casa Branca acredita fortemente na Primeira Emenda”, disse a secretária de Imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt. Mas com limites. “Sabemos que muitos veículos da mídia tradicional neste país divulgaram mentiras sobre o presidente e sua família, e não aceitaremos isso.”