O ENEM e o dedo na ferida da intolerância religiosa brasileira

Carlos Henrique Carlos Henrique -

Mais uma vez o tema da redação do ENEM é a exposição de uma chaga do comportamento da sociedade brasileira. Em 2014 o tema foi “Publicidade Infantil em Questão no Brasil”, aquele tema que 500 mil estudantes tiraram nota ZERO na redação, lembram? Em 2015 o tema foi “Persistência da Violência Contra a Mulher na Sociedade Brasileira” e agora em 2016 o tema apresentado foi “Caminhos para Combater a Intolerância Religiosa no Brasil”.

Desde a prova – há 3 dias –  já li que o tema foi absurdo, que não existe intolerância religiosa no Brasil, que somos um país cristão e que no cristianismo não há intolerância, que isso é “coisa do Estado Islâmico”, etc. Pelos comentários que li fico realmente preocupada com a qualidade das redações que foram entregues.

É importante a gente pontuar que pois a história da humanidade é marcada por disputas que resultaram na supremacia das manifestações culturais e religiosas do conquistador frente ao conquistado, sendo que  a fé do conquistador sempre era apresentada como “certa”, “correta”, “única verdadeira”.

Pensando sobre como a intolerância religiosa é uma prática antiga, antiquíssima me lembrei da história onde Voltaire (o filósofo francês) ao saber da condenação e execução do comerciante calvinista Jean Calas, de 63 anos, acusado de ter assassinado o próprio filho que, segundo boatos, pretendia se converter ao catolicismo redige o chamado “Tratado pela Tolerância”. Este livro, na época, foi proibido de circular na França, de tão acirrados que eram os conflitos entre católicos e protestantes em um clima de guerra e ódio mortal.  Em março de 1763, após a publicação do Tratado, o caso é reaberto pelo Conselho do Rei. Dois anos depois Jean Calas é oficialmente inocentado, é confirmado o suicídio de seu filho e sua família indenizada pelo Estado francês. Basicamente a motivação do crime foi a intolerância religiosa.

No mundo hoje ainda há regiões com conflitos seríssimos entre muçulmanos e hindus, hindus e budistas, católicos e protestantes, muçulmanos e cristãos e etecetera.

O fundamento da intolerância religiosa é a certeza, a convicção de que minha prática, meus valores e minhas crenças religiosas são as únicas validas e corretas, sendo todas as outras erradas e inferiores. O difícil é que o combustível da intolerância é algo intangível e de complicado diálogo: a fé.

No Brasil, de formação e maioria católica a intolerância religiosa já atingiu e perseguiu os mais diversos grupos: religiões de matriz africana, protestantes históricos (no Brasil Colônia), pentecostais, kardecistas e cultos indígenas. Mas hoje em dia as religiões de matriz africana como o candomblé, a umbanda são os grupos que mais sofrem com o misto de racismo, preconceito e intolerância.

Para quem duvida, a advogada Aline Morais cita em um artigo que que 70% dos casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados entre 2012 e 2015 na justiça brasileira são contra praticantes de religiões de matrizes africanas. Isso se deve resumidamente por dois motivos: a formação histórica do Brasil e o fato destas religiões serem tidas desde o Brasil colônia como “coisa de escravo” (e olha o racismo junto) e mais recentemente pelo triste fato de neopentecostais adotarem como estratégia o discurso demonizador e beligerante do tempo da Inquisição católica, em pleno século XX, associando estas religiões à figura do diabo.

Como desconstruir a intolerância religiosa? Como ensinar as pessoas a conviverem em paz e com respeito pela prática/crença alheia? Pergunta difícil! O preconceito religioso, étnico, político, cultural, ou seja, a incapacidade humana em se reconhecer no “outro” e respeitá-lo é, sem sombra de dúvidas, um fator essencial gerador da intolerância e quando se vive cristalizado dentro de uma redoma é quase impossível haver empatia com quem é diferente.

Para Voltaire o conflito religioso que levou à condenação injusta de Jean Calas demonstrava que a religiosidade pode incentivar o ódio e a perseguição, ao invés de promover o amor e a solidariedade. Para ele a forma de superar o fanatismo era “submeter essa doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente os homens. Essa razão é suave, humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que a força é capaz”. Hoje em dia isso pode ser traduzido como estudar, ler, aprender mais sobre o outro para poder respeitá-lo mesmo tendo crenças e práticas diferentes das dele.

Para promover o respeito à alteridade, o conhecimento intercultural pode contribuir para que sejam superadas as barreiras do preconceito e da ignorância que separam e geram estranhamento entre indivíduos e grupos humanos. É preciso que a gente aceite que existem pessoas diferentes, que pensam de forma diferente, que vivem de forma diferente e que não querem e nem precisam ser mudadas ou forçadas a um modo único, no caso o meu, de pensar e de crer.

É urgente que o discurso religioso compreenda dos limites entre a pregação da sua fé e incitação do preconceito contra a fé do outro e para isso precisamos que a religião deixe de ser uma arena de batalha onde só pode haver vencedor ou um local de pedidos materiais a serem atendidos de forma delivery para se tornar um meio de se ligar ao Sagrado, de se tornar alguém mais solidário e humano. Religião, aliás, significa isso mesmo, “re-ligare, ou religar o homem a Deus.

Para mim, o início do fim da intolerância começa quando compreendemos que o outro é isso mesmo, OUTRA pessoa e que a forma como cada um de nós encontra para alcançar o Sagrado, para crer em um Deus e para viver sua espiritualidade é algo particular, intransferível e de foro íntimo. Para eliminar o preconceito, a intolerância, o discurso de ódio e tantas práticas abjetas é preciso que a fé é individual e que é direito universal e também constitucional. Viva a sua fé, a sua não-fé e deixe que cada ser humano, cada família viva aquela que mais lhe convém.

Embora esta defesa da tolerância possa parecer ingênua diante da onda contemporânea de discursos temos que difundi-la como antídoto contra aquelas concepções que propagam que o mundo só pode ser uma arena de luta de todos contra todos aonde só existe um vencedor pois em uma guerra todos perdem, até mesmo os que vivem a ilusória sensação de serem os vencedores.

Eva Cordeiro é economista e professora universitária. Escreve todas as terças-feiras

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