Com mais de 2 anos de atraso, SUS passa a ofertar tratamento para AVC isquêmico grave

Adoção do procedimento já havia sido comunicada em portaria publicada em fevereiro de 2021, mas sem concretização

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Tomografia cerebral mostra um evento de trombose venosa no cérebro de uma paciente – (Foto: Marisa Cauduro/ Folhapress)

PATRÍCIA PASQUINI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com mais de dois anos de atraso, o SUS (Sistema Único de Saúde) começará a oferecer a TM (trombectomia mecânica), tratamento que promete melhorar a qualidade de vida, a capacidade motora e a memória, além de proporcionar independência a pacientes que sofreram AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico agudo grave.

Este tipo de AVC ocorre quando há obstrução de uma artéria, impedindo a passagem de oxigênio para células cerebrais, que morrem. Essa obstrução pode acontecer devido a trombose ou embolia.

A adoção do procedimento já havia sido comunicada em portaria publicada em fevereiro de 2021, mas sem concretização.

Agora, outra portaria, a GM/MS Nº 1.996, de 24 de novembro de 2023, publicada no Diário Oficial da União nesta semana, informa sobre a inclusão da TM na tabela de procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais especiais do SUS, e os 12 hospitais brasileiros habilitados para oferecer a trombectomia mecânica.

Em nota, o Ministério da Saúde disse que a TM foi incorporada ao SUS em 2021, mas não foi efetivada pelo governo Bolsonaro. O processo foi retomado para efetivar e regulamentar a operacionalização do procedimento, assim como a definição dos critérios de elegibilidades dos estabelecimentos de referência.

Estatísticas mundiais do Global Burden of disease apontam que o AVC isquêmico é o tipo mais comum da doença e corresponde de 80% a 85% dos casos. As ocorrências graves representam 30% do total do AVC isquêmico.

Inicialmente, o tratamento está disponível no Hospital Geral de Fortaleza (CE), Hospital de Base do Distrito Federal, Hospital Estadual Central (ES), Irmandade de Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS), Hospital Municipal São José (Joinville, SC), Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, Hospital das Clínicas da Unicamp de Campinas, Hospital das Clínicas Faepa Ribeirão Preto, Hospital de Base de São José do Rio Preto, Hospital Santa Marcelina e Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (SP). Todos atendem as recomendações da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde).

A expectativa é que até o final deste ano, pelo menos outros seis hospitais ofereçam a TM, como o Hospital das Clínicas do Paraná, a Santa Casa de São Paulo, o Hospital São Paulo (Unifesp), o Hospital Getúlio Vargas (Piauí), Hospital Geral Roberto Santos (Bahia), por exemplo.

Hospitais públicos podem pedir a habilitação. Os estabelecimentos deverão comprovar os critérios estabelecidos na portaria. A concessão ocorrerá após análise e aprovação das propostas, segundo o Ministério da Saúde.

Até antes da portaria, somente quatro hospitais públicos no Brasil (em São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina e Ceará) disponibilizavam a TM, com custeio pelo próprio hospital ou pela Secretaria Estadual de Saúde. Na rede pública, de forma geral, a única terapia clínica disponível era a trombólise endovenosa.

A trombólise só pode ser usada até 4 horas e meia a partir do início dos sintomas. Já na TM esse tempo sobe para 24 horas.

“É feito um cateterismo, com a punção de uma artéria da perna (na virilha), e vai até a circulação cerebral até achar o vaso sanguíneo entupido. No vaso sanguíneo entupido, é aberto um stent. O coágulo da circulação se gruda nesse stent, e ele é retirado da circulação cerebral. Ou pode ser usado uma aspiração, que vai pela circulação até onde o vaso está entupido e suga o coágulo, abrindo também o vaso sanguíneo cerebral”, explica a neurologista Sheila Martins, professora da Faculdade de Medicina da UFRGS, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, chefe do Serviço de Neurologia do Hospital Moinhos de Vento, presidente da Rede Brasil AVC e da World Stroke Organization.

“A chance de um paciente sair sem sequela do AVC, de ter uma independência funcional, é de pelo menos 50%. Agora, você pode ter recuperações parciais, como ter que andar com uma bengala ou apresentar alguma dificuldade”, afirma Michel Frudit, neurorradiologista intervencionista e chefe do Serviço de Neurorradiologia Intervencionista do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Frudit ressalta que é necessário organizar o sistema de saúde com o Samu para que o AVC passasse a ter uma hierarquia, assim como o infarto e o traumatismo grave, por exemplo. “Ele teria que estar ali na primeira opção, o que não acontece hoje. É preciso vencer várias etapas.”

“Tem uma cadeia de fatos que devem acontecer na hora que o paciente chega ao hospital. Ele não vai diretamente para o procedimento. Comparamos a um pit stop de Fórmula 1. O piloto é o cara que vai fazer a trombectomia, mas você tem um monte de outras pessoas funcionando para que saia de maneira correta, sem perder tempo.

Você precisa do neurologista, da tomografia, do laudo. Tudo deve ocorrer de maneira muito encadeada, rápida e organizada”, explica Frudit.

A TM já havia sido aprovada nos Estados Unidos, países da Europa, no Canadá e na Austrália. A eficácia e o custo-benefício foram comprovados por nove estudos clínicos.

No Brasil, o Ministério da Saúde financiou um estudo, chamado Resilient, que avaliou durante dois anos a trombectomia em 221 pacientes atendidos nos 12 hospitais do SUS recém-habilitados.

“Parou na primeira análise parcial, porque já mostrou eficácia. Nós diminuímos a chance de morrer ou ficar com sequela grave de 50% para 30%, ou seja, aumentamos em 2,6 vezes a chance de o paciente ficar independente para o dia a dia e aumentamos em 3 vezes a chance de ele ficar normal. Em junho de 2020, a pesquisa foi publicada na ‘New England Journal of Medicine’ e em julho submetemos à solicitação de incorporação”, relata neurologista Sheila Martins.

O estudo Resilient mostrou que, com o procedimento, a taxa de recanalização na oclusão de grandes vasos chega a 82%, mais eficiente que o tratamento convencional de trombólise endovenosa, com 30% nestes casos de oclusão de grandes vasos.

“Agora, é um grande trabalho de capacitação dos profissionais e de auxílio na organização dos serviços para que a gente possa expandir isso para todo o Brasil o mais rápido possível. Isso foi um grande marco no nosso país. Essa portaria vai mudar a vida de muitas pessoas. E o Brasil, de novo, será um modelo para o mundo, um sistema único de saúde universal que realmente dá acesso aos melhores tratamentos”, afirma.

“O AVC pode não matar na hora, mas vai deixar uma sequela definitiva se não tratado. Esse procedimento vem para resolver o problema desse paciente, que pode voltar a ter uma vida normal e ser independente. Mas é preciso investir em saúde, prevenção e em várias outras coisas”, finaliza Frudit.

De acordo com a portaria, o recurso sairá do Bloco de Manutenção das Ações e Serviços Públicos de Saúde – Grupo de Atenção Especializada -cerca de R$ 73.9 milhões por ano. O Fundo Nacional de Saúde adotará as medidas necessárias para a transferência dos valores mensais relativos, de acordo com a apuração da produção de serviços registrada na base de dados do Sistema de Informações Hospitalares – SIH/SUS.

A realização da trombectomia mecânica deverá seguir os critérios estabelecidos no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Acidente Vascular Cerebral Isquêmico Agudo, que será atualizado.

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