Entenda por que a carne deve continuar escassa no prato brasileiro até o final de 2022

Com o recrudescimento da pandemia e o aumento da taxa de desemprego (que beira os 15%), a previsão é que este consumo caia ainda mais em 2021, para 26,4 quilos per capita

Folhapress Folhapress -
Carne no açougue, preço começa a cair timidamente. (Foto: Reprodução)

Daniela Madureira, de São Paulo – Enzo Celulari, filho dos atores Cláudia Raia e Edson Celulari, causou furor nas redes sociais na semana passada ao questionar se a queda recorde no consumo de carne no Brasil -que está no patamar mais baixo dos últimos 25 anos -se deve à diminuição da renda da população ou a uma mudança de hábitos.
Enzo é vegetariano por opção, mas as classes C, D e E estão abandonando a proteína animal por necessidade.

Segundo analistas ouvidos pela reportagem, a atual conjuntura deve manter a pressão sobre o preço da carne no país pelo menos até o fim de 2022.

Existe uma série de fatores contribuindo para esta projeção, que envolve desde a falta de bezerros no mercado, passando pelo alto preço de commodities como soja e milho, responsáveis pela ração do gado e cotadas em dólar, até a explosão da demanda asiática, em especial da China, região onde o poder de compra está em alta.

Neste cenário, a alta da carne independe até mesmo de grandes movimentos no mercado interno, inclusive uma eventual fusão entre Marfrig e BRF.

O atual patamar de consumo de carne no Brasil, de 27,6 quilos ao ano por habitante, é 46% menor do que o verificado no auge do consumo no país, em 2006. Naquela época, o brasileiro tinha à sua disposição 42,8 quilos de carne bovina ao ano, segundo dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), vinculada ao Ministério da Agricultura.

Com o recrudescimento da pandemia e o aumento da taxa de desemprego (que beira os 15%), a previsão é que este consumo caia ainda mais em 2021, para 26,4 quilos per capita.

“O consumo de carne bovina é diretamente proporcional ao aumento da renda”, diz Sergio De Zen, diretor de política agrícola e informações da Conab. Ele aponta o deslocamento do dinamismo da economia mundial para a Ásia.

“Trabalhamos com projeções que apontam a inserção, em cinco anos, de até 250 milhões de novos consumidores asiáticos com alto padrão de renda familiar”, diz ele, ressaltando que a demanda também vem de outros países da região do Pacífico.

“A Indonésia, por exemplo, tem 270 milhões de habitantes, uma população maior que a do Brasil, enquanto as Filipinas tem 108 milhões”. Com isso, diz, a pressão sobre os preços tende a se manter ao longo dos próximos anos.
A China está à frente deste movimento. Segundo a Agrifatto, casa de análise de investimentos em ativos agropecuários, no acumulado entre janeiro e novembro de 2020, a China respondeu por 52% das importações de carne brasileira, seguida por Hong Kong (11%). O terceiro lugar pertence ao Egito (6%).

“Assim que a China se recuperou da crise do coronavírus, no segundo trimestre, partiu para as compras de alimentos no mercado internacional”, diz Marcos Henrique do Espírito Santo, analista da consultoria Lafis.

O Brasil divide a liderança global na produção de carne bovina com os Estados Unidos. Em 2020, foram produzidas 7,77 milhões de toneladas no país, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), enquanto as exportações somaram 2,13 milhões de toneladas, conforme relata a Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, vinculada ao Ministério da Economia.

Isso significa que 27,4% do que se produziu de carne bovina no Brasil foi exportado no ano passado. De acordo com especialistas, é um avanço em relação à média histórica de 20% de exportação observada na década passada.

A fome asiática não se restringiu aos bifes. Em 2020, os embarques de carne suína do Brasil para a China cresceram 106% em relação ao ano anterior e atingiram 513,5 mil toneladas, ou 50,7% do volume total exportado.

No caso da carne de frango, os embarques do Brasil para a China somaram 673,2 mil toneladas em 2020, 15% mais que em 2019 e 16% do total, segundo dados da ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal).

O aumento da demanda asiática sobre as carnes brasileiras, acompanhado da alta do preço das commodities que alimentam as criações, gerou impacto no prato do brasileiro. Enquanto o preço da carne bovina cresceu 35% em 12 meses até abril, segundo o IPCA (índice oficial de inflação do país), o preço da carne suína avançou 59% no período e o frango congelado, 70%, aponta Espírito Santos, da Lafis.

“A pressão inflacionária atingiu mesmo as proteínas mais baratas”, diz.
Na opinião de De Zen, da Conab, o planeta vive uma mudança estrutural, a partir da elevação do patamar da demanda global de alimentos, que traz consigo novos níveis de preços.

“Em parte por conta da pandemia, que deixou muita gente em casa, as pessoas vêm alocando mais recursos para alimentos, ao mesmo tempo em que são beneficiadas por políticas de proteção e distribuição de renda, adotadas por diversos governos”, diz.

O alimento bovino, porém, é um investimento de longo prazo e não pode ser rapidamente adaptado a este aumento de demanda. “A disparada do consumo chinês foi provocada não só pelo aumento da renda local, mas também pela falta de proteína no mercado, depois que a peste suína africana dizimou 40% do rebanho suíno chinês, no final de 2018”, diz Lygia Pimentel, diretora da Agrifatto.

Enquanto isso, entre 2016 e 2018, os produtores brasileiros abateram muitas fêmeas, o que aumentou o preço do bezerro e diminuiu a oferta de gado pronto para entrega. Desde o final de 2019, com o preço do bezerro em alta, os produtores passaram a reter as fêmeas para produzir novos animais.

Com menos fêmeas indo para o abate, a oferta de carne ficou reduzida em 2020. “A tendência é que a retenção de fêmeas continue neste ano e o preço do bezerro volte a normalizar em meados de 2022”, diz.

A pressão sobre o preço da carne no varejo, porém, deve permanecer pelo menos até o fim do ano que vem, afirma Lygia. “De 2020 para cá, o preço do boi subiu 50%, o preço da carne no atacado subiu 40% e, no varejo, 32%”, diz a diretora da Agrifatto.

“O varejo tem segurado esse repasse sobre o preço do produto, e ainda assim uma grande massa de consumidores não consegue adquirir. Algo que só muda com a geração de emprego e renda”, afirma. “É uma crise sem precedentes”.

A vida do produtor, por sua vez, também não está fácil. “O custo de produção saltou 70% entre o final de 2019 e o começo de 2021, por conta dos insumos atrelados ao dólar e a desvalorização da moeda brasileira”, diz Lygia, lembrando que os produtores independentes são os fornecedores de grandes frigoríficos, como Marfrig, Minerva e JBS (que têm apenas uma pequena parte da sua produção oriunda de rebanho próprio).

“Os frigoríficos ganham com as exportações, mas, por também terem boa parte da dívida em dólar, sofrem com o câmbio”, afirma.

Procurados para comentar sobre como pretendem reagir à queda histórica do consumo de carne no mercado nacional, JBS, Marfrig e Minerva não quiseram se pronunciar. BRF não respondeu ao pedido de entrevista. Na semana passada, o mercado financeiro especulou sobre uma possível fusão entre Mafrig e BRF, depois que a primeira comprou 24% das ações da segunda por cerca de R$ 3,2 bilhões.

“Uma possível fusão entre esses grupos não iria repercutir no curto e médio prazo sobre o preço dos produtos, uma vez que os direcionadores de preço estão no mercado externo”, diz Gregory Ribeiro, analista da área de alimentos da consultoria Euromonitor.

Guilherme Moreira, economista e coordenador do Índice de Preços ao Consumidor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (IPC-Fipe), concorda. “Os fatores que ditam a disparada no preço da carne estão fora do controle dos frigoríficos”, afirma.

“Uma virtual união entre os grupos poderia ser, inclusive, um rearranjo do mercado brasileiro diante desse novo cenário global de demanda por alimentos”, diz. Para Moreira, tudo o que os frigoríficos querem hoje é boi para vender -mas falta produto.

“O preço da arroba está em R$ 330, isso é mais do que o dobro dos R$ 160 praticados ao final de 2019 – um preço que não volta mais”.

Segundo Ribeiro, da Euromonitor, a venda de carne fresca em balcão, como nos açougues, registrou queda de 5% no Brasil em 2020 sobre 2019. Já a venda carne processada (embalada) caiu 6%.

“Acreditamos que o primeiro trimestre deste ano tenha observado uma queda ainda mais expressiva”, afirma. Também por conta da pressão das commodities agrícolas usadas como ração, ele afirma que a pressão sobre os preços da carne deve permanecer ao longo de 2022.

Um dos caminhos para solucionar a questão é tecnologia para aumentar a produtividade. “Em 2001, a média nacional era de 100 vacas por 250 hectares, com uma média de 45 bezerros de 170 quilos. Em 2020, tivemos 100 vacas por 140 hectares, com 65 bezerros de 200 quilos”, afirma De Zen, da Conab. O tempo médio de engorda, de 30 a 40 meses, baixou para 24 a 30 meses, diz.

Mas para outros especialistas a solução está na mudança do cardápio. Dados do Departamento de Produção Vegetal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP (Universidade de São Paulo), apontam que, no Brasil, 85% das terras são dedicadas à produção de soja e milho, sendo que a maior parte disso é destinado à ração animal.

No país, são necessários 10 quilos de grãos para produzir um quilo de matéria seca de frango, e 22 quilos de grãos para um quilo de carne suína. No que se refere aos bovinos, tomando como base os Estados Unidos, é preciso produzir 40 quilos de grãos para um quilo de boi. Neste contexto, o grande desafio é a mudança no padrão alimentar, com a diminuição da demanda por produtos de origem animal.

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