Homem negro condenado injustamente há 43 anos é libertado nos EUA
Ele foi condenado à prisão perpétua e sem direito de condicional por um júri formado apenas por pessoas brancas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após um homicídio triplo na noite de 25 de abril de 1978, dois homens se declararam culpados e foram condenados a 20 anos de prisão. Um terceiro suspeito nunca foi indiciado, e um quarto, um adolescente de 16 anos, escapou da acusação.
Já um quinto homem, Kevin Strickland, que assistia à TV em casa na hora do assassinato, ficou 43 anos preso. Negro, ele foi condenado por um júri formado apenas por pessoas brancas à prisão perpétua, sem direito de condicional por 50 anos. Nesta terça (23), ele conseguiu ter sua sentença anulada e deixará o cárcere.
O caso em Kansas City é o mais longo de uma condenação injusta confirmada no estado de Missouri e um dos mais longos dos EUA, segundo o jornal americano The Washington Post. A história do fim da década de 1970 foi um acerto de contas, no qual Strickland acabou envolvido por engano.
Naquela noite, ele parou para conversar com quatro conhecidos da vizinhança, em frente à sua casa. Eram Vincent Bell, então com 21 anos -Strickland era amigo da irmã dele e fazia bico de motorista para o pai dos dois-, Kilm Adkins, 19, Terry Abbott, 21, e um adolescente de 16 anos.
Strickland logo deixou o grupo para ficar com sua filha, uma bebê de sete semanas, e os demais dirigiram-se à casa de Larry Ingram, 21. Adkins e Abbott haviam discutido como poderiam se vingar por terem sido trapaceados em um jogo de dados no qual perderam US$ 300.
Chegando ao imóvel alugado que Ingram usava para a jogatina, eles amarraram o anfitrião e o mataram a tiros, assassinando também dois amigos que estavam com ele. A namorada, Cynthia Douglas, 20, sobreviveu, apenas com ferimentos não letais na perna, depois de se fingir de morta, segundo os registros dos tribunais.
Enquanto isso, Strickland jantou com familiares, falou ao telefone e ficou jogando em casa, onde admitiu ter bebido e fumado, de acordo com o Washington Post. Às 22h, soube do crime pela TV. Nada o ligava ao crime, e seus familiares confirmaram o álibi. Ainda assim, na manhã seguinte, enquanto a mãe de sua filha deixava a bebê, a polícia bateu à porta. Ele foi levado para delegacia e demorou a perceber que era acusado de algo.
Quando se deu conta, Strickland pediu para que um reconhecimento fosse feito. Douglas, ainda suja de sangue -segundo ela depois relatou ao seu amigo Eric Wesson, hoje editor do jornal Kansas City Call-, foi chamada à delegacia. Registros dos tribunais indicam que ela se lembra de policiais induzindo-a a apontar para Strickland: “Você vai poder seguir em frente e não se preocupar mais com esses caras”.
O caso então foi montado. O primeiro julgamento, em 1979, foi completamente baseado no depoimento da sobrevivente, que, segundo o Post, ficava cada vez mais convencida de ter visto Strickland, ainda que tenha expressado falta de certeza à polícia em um primeiro momento.
Questionada pelo procurador do condado se havia dúvidas se quem estava com a arma era Strickland, a jovem respondeu: “É um fato”. O júri, no entanto, não chegou a um consenso, pois o único integrante negro se recusou a considerá-lo culpado. Em um novo julgamento, desta vez com um júri totalmente formado por pessoas brancas, ele foi considerado culpado pelo homicídio triplo.
Strickland chorou muito ao ouvir a decisão. Seu irmão, L.R. Strickland, disse ao Washington Post ter ficado aliviado pelo fato de a sentença não ter sido de pena de morte, mas prisão perpétua.
Na sequência, começou uma batalha para a defesa de sua inocência. Dois meses após o crime, em junho de 1978, Bell e Adkins já haviam sido presos pelo envolvimento no caso. Abbott chegou a ser considerado suspeito, mas ele e o adolescente de 16 anos não foram indiciados.
Quatro meses após Strickland ser preso, Bell disse ao tribunal que Douglas fez uma confusão ao ligá-lo ao caso. Mais uma vez, em 1979, ele repetiu: “Estou falando a verdade a vocês hoje, que Kevin Strickland não estava na casa naquele dia”. Bell, que morreu no início deste ano aos 64, e Adkins se declararam culpados e receberam uma pena de 20 anos.
Douglas depois tentou reverter seu depoimento, segundo o Post. A primeira vez que foi até um procurador, no entanto, ele a ameaçou com uma acusação de falso testemunho. Algo parecido se deu novamente nos anos 1990.
Em 2004 e em 2009, ela procurou Wesson, do Kansas City Call, em busca de ajuda. Na segunda vez, ele sugeriu procurar o Midwest Innocence Project, organização sem fins lucrativos que auxilia condenados injustamente.
Strickland também fora à instituição. Quando Tricia Rojo Bushnell, hoje sua advogada e diretora da organização, entrou para o projeto em 2013, foi designada a analisar inscrições antigas e se deparou com o caso. Imediatamente, segundo o Post, ela viu uma condenação instável.
O caminho de Strickland, no entanto, ainda teria mais um obstáculo. Douglas morreu em 2015, aos 57 anos, sem conseguir retificar seu depoimento. Àquela altura, ele achou que as chances para a anulação de seu julgamento haviam acabado. “Eu acho que xinguei Deus: ‘Por que eu? Por que você me provocou assim, Deus?'”, ele contou ao jornal americano.
Sua sorte começou a mudar quando o jornal Kansas City Star revisitou seu caso, no ano passado. Meses mais tarde, Bushnell entrou em contato com a promotora do condado de Jackson, Jean Peters Baker, pedindo uma investigação. Entre as novas descobertas estavam dezenas de impressões digitais, incluindo as da arma utilizada nos assassinatos, e nenhuma pertencia a Strickland.
O caso novamente estava montado, desta vez a favor de Strickland. Ainda assim, o procurador-geral de Missouri, o republicano Eric Schmitt -que deve concorrer ao Senado em 2022-, disse acreditar que ele era o autor dos assassinatos. O governador Mike Parson, também republicano, concordou e afirmou que o perdão não era uma prioridade -apesar de ter concedido indulto a Mark e Patricia McCloskey, casal branco que saiu de casa armado e ameaçou manifestantes antirracismo no ano passado.
Os porta-vozes de Parson e Schmitt não responderam ao Washington Post.
Mesmo sem esse apoio, Strickland foi novamente a julgamento. “Diante dessa circunstância única, a confiança do tribunal na condenação está tão abalada que não pode ser mantida, e o julgamento da condenação deve ser anulado”, determinou o juiz James Welsh nesta terça. “O estado de Missouri deve imediatamente libertar Kevin Bernard Strickland de sua custódia.”
Agora, Strickland pode vislumbrar a realização de dois sonhos: visitar o túmulo de sua mãe, morta em agosto aos 85 anos sem ver o filho em liberdade, e ver o mar pela primeira vez.