Sem contar à família, pai se despede em estação de trem para ir à guerra contra Rússia
Dizia que o que mais faria falta seriam as partidas de futebol no fim dos dias calmos que viviam
ANDRÉ LIOHN
LVIV, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – De cabeça baixa, rosto magro e ombros curvados, o programador Oleksander Kharchenko, 40, despede-se de sua esposa e de seus filhos de 6 e 10 anos de idade na estação de trem da cidade de Lviv.
Dizia que o que mais faria falta seriam as partidas de futebol no fim dos dias calmos que viviam na cidade de Kharkiv antes de a guerra começar. O governo ucraniano proibiu homens de 18 a 60 anos de deixar o país, mas Kharchenko afirma que ficaria na Ucrânia de qualquer forma.
“Em toda a história da Ucrânia, os russos nos forçaram a viver como eles achavam melhor. Agora o mundo é outro, a União Soviética não existe mais, eu tenho outras oportunidades, meus filhos terão mais oportunidades que eu, não precisamos mais esperar que nossas vidas sejam controladas por ditadores”, afirmou ele. “O que queremos é poder ser aquilo que conseguirmos ser. Só isso.”
Kharchenko afirma esperar que a mulher e os filhos, sem terem onde ficar quando chegarem à Polônia, consigam seguir para os Estados Unidos, onde um tio vive na cidade de Chicago. O programador explicou à filha que o país está em guerra, mas não contou que estava deixando a família para se juntar aos militares e civis que integram a resistência ucraniana em Kiev contra as tropas da Rússia.
“Claro que não contei a eles que vou combater. Não falei com minha esposa, mas minha filha percebeu e me perguntou o que estava acontecendo. Ela me perguntou se na guerra todos viravam soldados, e eu disse que ela não precisava se preocupar, mulheres e crianças não precisavam se tornar soldados.”
Os trens que deixam Lviv nunca são suficientes para levar todos aqueles que querem deixar o país, e a cidade, no oeste ucraniano, transformou-se no funil onde pessoas se espremem em desespero, fugindo das áreas onde os combates entre o Exército ucraniano e as forças de ocupação russa se intensificaram.
“Ne plach, bud´ laska [não chore, meu amor, não chore]”, dizia uma mãe que tentava acalmar o bebê que chorava de fome, sono e frio em meio a milhares de pessoas esmagadas dentro de um corredor longo em comprimento, mas de apenas alguns passos de largura. Pessoas cansadas, crianças chorosas, mulheres com rostos tristes e idosos doentes entupiam o corredor de acesso aos portões de embarque na estação.
Nas últimas 24 horas, forças de ocupação russa intensificaram os ataques em diversas partes da Ucrânia. Imagens de satélite da empresa americana Maxar mostram que um comboio militar russo de 64 km de comprimento está se aproximando da capital Kiev. Além dos ataques contra a cidade de Kharkiv, no norte, forças russas também estão atacando Kherson e Mariupol, na região do mar Negro.
A Rússia não divulga suas baixas na guerra, e a Ucrânia o faz parcialmente. O último balanço de Kiev, até segunda-feira (28), registrava 350 vítimas civis, sem informar sobre militares –a ONU contabilizava 102 civis ucranianos mortos. Sem acesso às linhas de frente, jornalistas não podem confirmar o que tem ocorrido com pessoas como Kharchenko. Uma coisa, no entanto, é certa: muitas das famílias, mulheres crianças, filhas, filhos e pais estão se despedindo pela última vez na estação de Lviv.