Regime cubano acabou, e oposição não está só em Miami, diz ativista
Afirmação delineia parte das contradições que marcam a relação de países da região com a Revolução Cubana dos irmãos Fidel e Raúl Castro
IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os protestos de 11 de julho de 2021 selaram o fim do apoio popular ao regime comunista cubano, algo que a esquerda latino-americana não vê em seu apoio à ditadura.
Mas a oposição não se resume aos criticados exilados de Miami.
A afirmação, feita pela curadora de arte Carolina Barrero, 35, delineia parte das contradições que marcam a relação de países da região com a Revolução Cubana dos irmãos Fidel e Raúl Castro, em 1959. Com efeito, políticos autoritários como o ex-presidente americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro figuram como críticos vocais da ditadura caribenha.
Ela diz que líderes como Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-presidente que lidera a corrida pelo Planalto, deveriam rever sua posição favorável ao regime de Havana sob pena de serem julgados pela história.
Barrero estava no centro do movimento que levou aos megaprotestos contra a ineficiência estatal, problemas econômicos e falta de liberdades na ilha. Nas contas de ativistas, mais de 1.300 foram presos. Havana diz ter condenado 381 pessoas até aqui.
Historiadora que havia sido curadora da Bienal de Havana, ela integrou o 27N, movimento surgido em 27 de novembro de 2020 -quando 500 artistas fizeram o maior ato ocorrido em frente a um prédio do regime, no caso o Ministério da Cultura, para protestar contra o fechamento da sede do Movimento San Isidro, um núcleo cultural.
No princípio de tudo está o primeiro ato do governo de Miguel Díaz-Canel, que substituiu os Castro no poder em 2018: um decreto tentando controlar toda atividade artística. Para a ativista, a ditadura está em um momento ainda pior.
Barrero pagou o preço do ativismo, passando seis meses em prisão domiciliar pontuada por visitas a interrogatórios, e foi forçada a deixar a ilha no começo deste ano. Desde então, mora em Madri, onde segue com seu trabalho artístico.
Rodou a Europa e, agora, está em um giro latino-americano para denunciar Díaz-Canel. No Brasil, está a convite da Fundação FHC, associada ao ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso. Com efeito, não se encontrou com ativistas de direitos humanos, usualmente ligados à esquerda filocubana local. Ela falou à reportagem na noite de quarta (15) em um hotel paulistano.
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PERGUNTA – Na América Latina, Brasil em particular, a maioria dos ativistas de direitos humanos pode ser considerada de esquerda. No geral, esse campo apoia o regime cubano. Como a sra. vê isso?
CAROLINA BARRERO – Direitos humanos não são nem de direita, nem de esquerda. É um assunto que não deveria ser ideologizado. Lamentavelmente, há essa confusão de linguagem, que é responsabilidade também do regime castrista, na América Latina. Eu gostaria de falar com ativistas no Brasil, mas não tentei, talvez devesse.
P – Líderes criticados por seu autoritarismo na região, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, são críticos de Cuba. Não acaba sendo contraditório?
CB – Bom, é algo da política. Veja, o regime militar do [general Jorge] Videla na Argentina [de 1976 a 1981], que foi praticamente fascista, tinha relação com Cuba. O México não é uma ditadura, mas em certa medida é um narco-estado mafioso com boa relação com Cuba.
Na América Latina, há a questão do sentimento anti-imperialista na esquerda, que vê o embargo a Cuba como uma luta entre Davi e Golias. Isso serve de cortina de fumaça.
P. – Que acaba justificando o regime.
CB – Sim, a narrativa serve ao governo para desviar a atenção das questões dos direitos civis, constitucionais, humanos e econômicos. Não quero, claro, minimizar os efeitos indiretos nos cidadãos. Mas as sanções são desenhadas para afetar a cúpula do país. É algo semelhante ao que Joe Biden fez com Vladimir Putin por causa da Ucrânia. Cuba apoia a guerra, uma coisa vergonhosa, devia ser responsabilizada.
P – No Brasil, Lula lidera a corrida presidencial e é um apoiador do regime cubano. O que a sra. espera dele?
CB – Eu diria a Lula o que diria ao [argentino] Alberto Fernández, a todos esses presidentes latino-americanos que são complacentes com o castrismo. Que se atrevam a viver na verdade. Que coloquem os valores da democracia acima dos interesses políticos e econômicos. É crucial no momento de crescimento do autoritarismo global. A história os julgará se não fizer isso.
P – Como a sra. compara a relação Cuba-EUA sob Obama, Trump e Biden?
CB – São diferentes momentos. Eu mesmo mudei minha ideia de como deveria ser a relação com os EUA. Não gostaria que os EUA tivessem tanta importância nos assuntos internos. O primeiro fã dos EUA é o regime castrista, que usa o embargo para justificar sua ineficiência burocrática. É uma obsessão, que remonta a 1901, no início da república. Temos de nos livrar dessa dependência psicológica.
P – A situação mudou após a chegada de Díaz-Canel ao poder? Ele não carregava, afinal, o sobrenome Castro, que tinha sua mística.
CB – Certamente, mas eu não vou dar nenhuma legitimidade ao castrismo. Mas tudo mudou, a Cuba atual não é a Cuba dos 1990, dos 2000, da aparente abertura quando Raúl Castro assumiu. Até 2018, eu pensava que o embargo só servia de justificativa do regime.
Não há embargo que justifique guardas jogando mães e crianças ao mar, ou a má administração. Como parte do mito, sobretudo na esquerda internacional, isso não tem como se sustentar depois do 11 de julho. Por pouco não tivemos uma guerra civil. Mas hoje eu acho que as sanções são coerentes.
P – Quando a sra. começou a se interessar por política?
CB – Minha geração era contestadora desde sempre. Eu tive sorte, pois fui criada pelos meus avós paternos nos anos 1990 numa casa em que os pais tiveram de sair de Cuba atrás de melhores oportunidades. Era uma época dura, após a queda da União Soviética [que ajudava a sustentar o regime], e eles eram de uma região muito rebelde, eram críticos do regime
Muita gente que hoje está no 27N começou a conversar, a enfrentar a polícia, em parques de Havana.
A abertura da internet, em 2013, mudou tudo. Logo estávamos nos comunicando, usando o VPN (sistema que permite acessar sites estrangeiros). Hoje as redes sociais, com todos os problemas de fake news e tal, são a ágora onde discutimos. Antes de Díaz-Canel, havia repressão, mas não tão forte talvez porque não éramos vistos como uma ameaça.
P – Agora isso mudou.
CB – Sim. Quando Díaz-Canel assume, sua primeira decisão foi implementar o decreto 349, que legalizou a censura artística no país. A censura sempre existiu nas artes, mas nunca havia virado lei.
Nos anos 1980, censuravam uma exposição, proibiam a pessoa de expor. Mas agora eles podem intervir e fechar o estúdio pessoal de um artista.
Como vínhamos dos anos de Obama, quando tudo parecia que ia mudar [com a abertura do americano à ilha], a classe artística não aceitou. Acho que eles acreditavam que a comunidade iria se atemorizar, as pessoas iriam pensar individualmente nos riscos. Mas aconteceu o contrário: só unidos poderemos parar isso, não queremos perder essa pequena liberdade que temos.
P – Não havia outros segmentos da sociedade envolvidos?
CB – Tudo começa na arte, mas depois isso se ampliou. Veja o manifesto do 27N, que nasceu do único protesto grande já feito em frente a um prédio público de Havana desde a revolução. O manifesto pedia liberdades políticas, porque não há liberdade artística sem elas. Isso se converteu num movimento cívico, que levou ao 11 de julho.
P – Como foi sua saída de Cuba?
CB – Eu passei seis meses presa em casa, de abril a novembro de 2021. Fugi duas vezes, conheci todos os calabouços de Havana. Em 31 de janeiro, durante o julgamento de ativistas, me deram a opção: ou eu saía do país ou iriam acusar também a mães dos jovens detidos. Fui embora, tenho dupla nacionalidade espanhola e parei em Madri, as minhas acusações ainda estão abertas.
P – Quando a sra. acha que voltará a Cuba?
CB – Quero voltar todos os dias, mas só quero voltar numa posição de força. A sensação de libertação do 11 de julho é algo que nunca pode tirar de você. Cuba nunca mais foi a mesma.
P – Como a sra. vê os próximos passos? A ditadura segue em pé.
CB – O mito da revolução caiu no 11 de julho, o regime não tem mais apoio popular. Por outro lado, o poder repressor é real, está aí. Mas eu acredito que são os estertores de um animal ferido. Este ano tivemos, segundo o Observatório Cubano de Direitos Humanos, mais protestos este ano do que no passado, só que eles são menores.
P – É preciso de um grupo para suceder outro no poder. Há alternativa?
CB – Essa pergunta é fundamental, e acho que a resposta não é a esperada. À diferença de Nicarágua e Venezuela, em Cuba não há partidos de oposição, apenas o Comunista, e qualquer forma de associação é perseguida. Isso parece uma desvantagem, mas eu acredito que é uma vantagem.
Isso porque o movimento de protestos foi uma autoconsciência dos direitos civis. Os partidos devem nascer dessas necessidades. As associações estão amadurecendo para o processo de transição democrática. Temos centros, grupos locais, movimentos como o 27N, grupos LGBTQI+, associações antimachistas e feministas, que lidam com um problema grande em Cuba.
O autoritarismo cubano é elitista, classista, machista, racista, é quase fascista. Se foi socialista, esqueceu há muito tempo. Assim, não é um terreno baldio.
P – O que a sra. diz é que a oposição cubana não está só em Miami. E eles?
CB – Todos são cubanos. Tenham a ideologia que tenham, têm direito a pensar a nação. Se não for assim, vamos repetir os mesmos erros do castrismo, não seria democracia. Claro, o exílio inicial de Miami tinham uma ideologia muito conservadora, muitos hoje são próximos de Trump, e têm direito a fazê-lo. Muitas vezes, são vistos como a única oposição cubana, e isso é algo que o regime incentivou.
São uma parte importante, mas não são os líderes.
Eu diria que ninguém lidera a oposição, por sorte. Acho melhor que não haja um “quem” nesse processo, que perpetua a lógica de um líder que substitui outro, assim podemos nos concentrar no “como”.
P – E haveria lugar para integrantes do poder hoje nessa transição?
CB – Claro, há lugar para todos. Cuba precisa se dirigir a um processo de reconciliação. Precisamos aprender com casos similares. O que não quer dizer que não houve crimes, é preciso uma Comissão da Verdade imparcial. É preciso algo na medida, sem ódio. Nem justiçamento, nem impunidade.
P – A sra. vai entrar na política?
CB – Sou ativista cultural e política, mas acredito que a casta política é parte do mal.