‘Temos que resistir à sedução teatral do jornalismo neutro’, diz Ronan Farrow

Filme acompanha a rotina de quatro profissionais de países democráticos enfrentando riscos em coberturas sobre política, conflitos raciais e direitos humanos

Folhapress Folhapress -

LÚCIA GUIMARÃES
NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) – “A imprensa americana precisa recuperar o tempo perdido sem confrontar o avanço autoritário”, afirma Ronan Farrow, jornalista e um dos autores das reportagens que revelaram os crimes sexuais do produtor Harvey Weinstein. A cobertura rendeu um Pulitzer ao New York Times e à revista The New Yorker, em 2018.

O jornalista, filho de Mia Farrow e Woody Allen, é o produtor-executivo do documentário “Endangered” (ameaçados de extinção), que estreia nos EUA nesta terça (28) e no Brasil no dia 5 de julho. O filme tem direção das americanas Rachel Grady e Heidi Ewing, indicadas ao Oscar por “Jesus Camp” (2006).

Farrow e Grady falaram sobre o filme, que acompanha a rotina de quatro jornalistas de países democráticos enfrentando riscos em coberturas sobre política, conflitos raciais e direitos humanos.

Um dos personagens é Patrícia Campos Mello, repórter do jornal Folha de S.Paulo e alvo de ataques da família Bolsonaro.

“Estamos numa situação em que não há dois lados, e temos que resistir à sedução teatral do jornalismo neutro. A imprensa foi reticente com Trump no começo, com medo de parecer partidária”, diz Farrow.

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Pergunta: Como a ideia de filmar “Endangered” tomou forma?

Rachel Grady: O Ronan já estava envolvido com a HBO para produzir documentários e procurava projetos. Ele entrou em contato conosco e começamos a procurar juntos. Conversamos muito até chegar ao conceito que reúne verdade, liberdade de expressão e perigo físico.

 

P.: O documentário acompanha um fotojornalista negro americano, um repórter britânico cobrindo Donald Trump até a invasão do Capitólio, uma jornalista brasileira cobrindo desinformação no governo Bolsonaro e a fotojornalista mexicana, a que mais corre riscos em protestos de mulheres –ela chega a ser presa e apanha da polícia. Jornalistas de democracias mais jovens são mais alertas para a repressão do Estado?

RG: Concordo 100%. Os americanos, até pouco tempo, achavam que a liberdade de imprensa era um direito garantido. Como a própria Patrícia diz no filme, brasileiros têm memória de períodos de repressão.

Ronan Farrow: Para todos nós nesta profissão, num país onde se espera respeito às leis, a perseguição costuma se limitar à intimidação legal ou espionagem, não é como na Rússia ou no Paquistão. Mas qualquer um que trabalha para revelar a verdade sabe que a situação pode se deteriorar. Tive experiências similares à da Patrícia e me senti mais forte conhecendo a história dela. [Farrow foi seguido por ex-espiões israelenses contratados por Harvey Weinstein e sofreu campanhas de difamação online.]

 

P.: No processo para selecionar os personagens, perceberam como autocratas sexualizam os ataques às mulheres jornalistas, que trabalham sob este risco extra?

RF: Sabemos que há misoginia sistêmica. Onde você trabalha e o quanto chega perto de fontes de intimidação parece ter esta constante, o sexismo está em toda parte.

 

P.: Durante a produção, o possível risco de aparecer no filme foi um fator de preocupação?

RG: Em qualquer documentário, sempre levamos em conta o impacto sobre os personagens que filmamos. Às vezes, a pessoa não percebe, no centro da ação, o nível de risco. No caso de “Endangered”, estávamos lidando com gente muito inteligente. Todos tinham os olhos bem abertos e sabiam das repercussões potenciais. A Patrícia, por exemplo, não quer atenção. Ela é tímida e sabe que pode trabalhar melhor se ninguém a reconhecer. Mas ela também é dedicada aos temas de sua cobertura.

 

P.: Redações nos EUA criaram “editorias de democracia” para cobrir política neste ano. É uma boa iniciativa?

RF: Este movimento, que não conheço em detalhes, é correto. Estamos enfrentando uma situação em que não há dois lados, e todos nós temos que resistir a esta sedução teatral do jornalismo neutro. Meu trabalho na New Yorker implica não ver o mundo com preconceito progressista, expor fatos em qualquer parte do espectro político. Mas tendências fascistas e radicais precisam ser expostas. Donald Trump começou como um produto da mídia de Nova York e de uma rede de TV. A imprensa americana foi reticente no começo, com medo de parecer partidária. Ela precisa recuperar o tempo perdido.

 

P.: O senhor foi funcionário do Departamento de Estado e escreveu sobre o desmonte recente da diplomacia americana em benefício do establishment militar -“atirar primeiro, fazer perguntas depois”. Esta ausência diplomática, acelerada sob Trump, facilitou o avanço autocrático em países aliados dos EUA e contribuiu para erodir a liberdade de imprensa no mundo? O governo Biden tenta corrigir isto?

RF: Quero ser cuidadoso para não conflagrar fenômenos diferentes, já que a política externa americana se realiza com alternância de partidos no poder. A expansão do complexo industrial militar é um fato. Hoje o governo faz um esforço –nem sempre bem-sucedido– para reverter isto. A resposta à militarização de democracias, à retórica anti-imprensa e à emergência de autoritários é mais jornalismo de qualidade.

 

ENDANGERED
Quando: Lançamento em 28.jun
Elenco: Sáshenka Gutiérrez, Carl Juste, Oliver Laughland, Patrícia Campos Mello e Joel Simon
Produção: HBO Max
Direção: Rachel Grady e Heidi Ewing
Duração: 90 min

RAIO-X
Ronan Farrow
O jornalista nascido em Nova York publicou textos em jornais e revistas como Los Angeles Times, The New Yorker e Wall Street Journal. É autor de reportagens que revelaram os crimes sexuais do produtor Harvey Weinstein. É filho da atriz Mia Farrow e do cineasta Woody Allen.

Rachel Grady

Documentarista americana, é codiretora de produções como “Jesus Camp” (2006), indicado ao Oscar em 2007 na categoria Melhor Documentário, “Detropia” (2012), vencedor do Emmy em 2014 na categoria Notícias e Documentário e “Os Meninos de Baraka” (2005).

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