Arroz, feijão e pão amanhecido
Dos tempos do “cardápio do almoço”, desse passado que salva, resgatei a alegria que brota sem esforço, que ressurge enfim implicando a redenção

Certa manhã, entrei na casa dos meus pais e encontrei na mesa da copa, em posição de destaque, o seguinte bilhete escrito à mão e assinado:
Sábado, 19 de fevereiro de 1994
Cardápio do almoço
Arroz
Feijão
Farinha – fabricação própria
Carne cozida – com tempero a moda
Ovos caipira, frito
Pepino com limão e sal
Skol, super gelada
Azeitonas importadas
Pão amanhecido, saudável
Sobremesas
Uvas frescas
Abacaxi
Goiabada
Queijo fresco
Atenciosamente,
Jorge Antonio Sahium
Bom Apetite.
A minha mãe havia antecipado o cardápio, meu pai deixou o recado. Se me lembro bem, o convite foi aceito por todos os meus irmãos que estavam na cidade. Nos encontramos lá antes do Meio Dia para tomar lugar à mesa da cozinha – “A cozinha era o útero da casa”, lá se gestavam todas as nossas histórias, acontecidas e por acontecer, as que arrancavam risos, as recontadas por mil vezes e desejadas mil vezes, as que emocionavam e geravam respeito e silêncio, às vezes uma lágrima de emoção.
Eram reuniões de muitas narrativas, coisa rara para os dias de hoje em que se prefere ficar ao smartphone e mostrar vídeos. Se você leu atentamente o “recado do meu pai”, não verá a descrição de um banquete nababesco, nada de comidas gourmet ou de pratos com nomes rebuscados.
Fruto do trabalho da minha mãe (professora) e do meu pai (farmacêutico), aquelas refeições eram especiais porque, como desejava o poeta Thiago de Mello em sua poesia Estatuto do Homem: “[que] o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor, mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa “.
Aprendi com o escritor coreano Byung-Chul Han, que a felicidade não é um acontecimento pontual. Ela tem uma longa cauda que se estende até o passado. Ela se alimenta de tudo o que foi vivido.
Dos tempos do “cardápio do almoço”, desse passado que salva, resgatei a alegria que brota sem esforço, que ressurge enfim implicando a redenção. Isso me livra da situação atual, congestionada de informações, em que tudo nos lança em um frenesi de atualidade. Nesse hoje é preciso perceber que “quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (HAN). A felicidade está no pós-brilho do cometa que passou.
Se o que importa é só o momento, então não existimos.
Somos um cometa de cauda longa, essa cauda é a nossa história, do nascimento até a morte. Só o tempo, suas relações e vivências nos dão ancoragem existencial.
Num encontro de sábado, com arroz e feijão, pepino com limão e pão amanhecido contamos histórias que carregam nossas experiências e valores, nosso respeito e amor, e nos entregamos (mesmo tempos depois) a contemplar o rosto da felicidade de um pai, de uma mãe, de irmãos e amigos (as) que não se importam com nenhum tipo específico de opinião, mas que estão a narrar uma única e bela história.







