Legado de Gandhi sobrevive cem anos após condenação por desobediência civil

Punição foi motivada por seus protestos contra o domínio colonial

Folhapress Folhapress -
Legado de Gandhi sobrevive cem anos após condenação por desobediência civil
Gandhi em 1946 (Foto: Reprodução/ Livro “Gandhi”)

BÁRBARA BLUM
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há cem anos, em 18 de março de 1922, Mohandas Gandhi começou a cumprir uma sentença de seis anos imposta pelo Império Britânico -então governante do que hoje são Índia, Paquistão e Bangladesh.

A punição, a mais longa aplicada ao indiano, foi motivada por seus protestos contra o domínio colonial, marcados pelo que ficou como sua principal herança: a desobediência civil não violenta.

Sistematizada por Gandhi na filosofia intitulada satyagraha (“a ideia da força da verdade”), essa forma de manifestação era caracterizada pela resistência pacífica à violência. Ou seja, adeptos da tática não reagiam ativamente a ataques, prisões e agressões perpetradas pelo poder colonial.

Apesar de aparentar passividade, o método surtiu efeito suficiente para que Gandhi fosse condenado e preso -mais de uma vez- e para que a Índia conquistasse a independência, em 1947.

“Desobediência civil é o nome moderno da tática de resistência, em geral pacífica, a uma legislação ou instituição. Foi usada por muitos movimentos sociais, e aqui no Brasil pelo movimento pela abolição da escravidão”, conta a socióloga Angela Alonso.

A professora de história Mirian Oliveira, da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), afirma que Gandhi é visto e representado como um dos pais da nação indiana. “Nas repartições públicas sempre vai ter uma imagem da figura dele, ele sempre é lembrado em cerimônias oficiais.”

A não violência faz parte, ainda, do projeto de soft power indiano, que vende ao exterior uma imagem de país tolerante e pacífico -apesar de suas fortes desigualdades sociais e conflitos étnicos, como disputas territoriais com os vizinhos Paquistão e China, com direito a tensões militares, e internas, no Punjab, marcado pelo separatismo sikh.

Com todas as contradições, a história da independência indiana é indissociável da imagem de Gandhi, “seja para louvar e endeusar ou para rejeitar -embora seja difícil rejeitar”, afirma Vinicius Tavares, especialista em Índia que leciona relações internacionais na PUC Minas.

O modelo de desobediência civil foi exportado antes mesmo das investidas diplomáticas indianas. Alonso cita os ativistas pacifistas contrários à guerra do Vietnã, e outro adepto ilustre foi o pastor Martin Luther King Jr., nome central do movimento negro por direitos civis nos EUA, que chegou a fazer uma viagem à Índia, em 1959.

Como o pastor, Gandhi cresceu em um ambiente religioso. Sua mãe, Putlibai, era devota hindu, e o estado em que viviam era fortemente influenciado pelo jainismo. Mirian Oliveira frisa que essa religião observa muito estritamente a não violência. “Seus seguidores não podem, por exemplo, ser agricultores, porque teriam que matar insetos. É uma concepção extrema.”

A rigidez religiosa acompanhou Gandhi quando ele foi estudar direito na Inglaterra, em 1888. Ele se juntou à sociedade vegetariana e fez votos à mãe de que não cederia ao modo de vida ocidental: consumo de carne, de álcool e relações com mulheres.

Em 1891, formado, retornou à Índia, mas logo viajaria novamente, em 1893, para a África do Sul, outra colônia britânica à época. Ali ele maturaria as posições anticoloniais e sofreria com políticas racistas, que classificavam asiáticos e negros como cidadãos de segunda classe -Gandhi foi preso algumas vezes por resistir à exigência constante de apresentar documentos.

Sua posição, porém, não era livre de contradições. Ainda na África, fez comentários em que considerava os povos asiáticos superiores aos negros e chegou a se referir a estes como “kaffirs”, termo racista usado no apartheid sul-africano.

Biógrafos apontam que, aos poucos, a posição do indiano foi se abrandando, e a defesa da libertação colonial passou a ser irrestrita. Em 1910 ele fundou o ashram (espécie de retiro comunitário) Fazenda Tolstói, perto de Joanesburgo, a partir de onde difundiu os ideais de não violência.

O nome do local homenageia o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910), que foi uma espécie de guru para Gandhi. Após servir na Guerra da Crimeia (1853-1856), Tolstói assumiu uma visão de mundo anarquista e pacifista, dizendo que jamais serviria “a nenhum governo, em nenhum lugar”.

“[Gandhi] pega a desobediência civil que já existia em outros lugares, de inspiração ocidental, e vai dialogar com as culturas locais para desenvolver um método particular”, diz Oliveira.

Em 1914, Mohandas se tornaria “mahatma”, título honorífico traduzível como “venerável”. No ano seguinte, retornaria à Índia de vez, dedicando sua militância à construção de um movimento de independência. “Ele inspira uma quantidade gigantesca de pessoas e vai ganhando eleição atrás de eleição”, lembra Tavares.

O Partido do Congresso, que ele liderou, hoje faz oposição ao primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista hindu comparado ao brasileiro Jair Bolsonaro (PL).

Rahul Gandhi, neto da primeira mulher a chefiar o governo indiano, Indira, e bisneto do primeiro premiê pós-independência Jawaharlal Nehru, é a figura à frente do partido (apesar do sobrenome, Rahul não é parente de Mohandas; seu avô Feroze Gandhy mudou a grafia do nome em homenagem ao mahatma).

Oliveira lembra que a tática da não violência não foi livre de contestação, e que Gandhi teve fortes desavenças com líderes étnicos -enquanto apelava para as massas e apostava na autoidentificação como instrumento de mobilização.

Em 1921, ele adotou as vestes de algodão cru. “Ele se torna modelo de conduta, encarna a proposta de transformação pessoal, de eliminar de si mesmo a dominação do jugo britânico por meio de suas vestimentas, de sua alimentação, seu comportamento cotidiano”, diz a especialista. “Ele pensava a independência não só como política, mas também do ponto de vista cultural e individual.”

Eliminar a influência do colonialismo, porém, não atropelou a adoção de uma Carta Magna que previa a Índia como Estado secular -mas que admite “a tolerância de símbolos e ideias religiosas na esfera pública”.

A independência dos britânicos, em 1947, significou também o doloroso processo de partição em dois Estados no subcontinente: um hindu (Índia) e um muçulmano (Paquistão). “Com a obrigação de dois Estados, podia-se questionar: o que esse muçulmano está fazendo no meu Estado hindu? É um incentivo para criar cidadãos de segunda classe, e Gandhi sabia que esse problema seria criado”, diz Tavares.

No dia seguinte à declaração de independência, Gandhi fez uma greve de fome em protesto contra a divisão. Menos de um ano depois, ele seria assassinado em um ashram por um nacionalista hindu que acreditava que o líder fora excessivamente generoso com grupos muçulmanos.

A filosofia e a prática sistematizadas por ele, porém, encontram ecos até hoje. Mirian Oliveira cita entre os herdeiros do mahatma a ativista ecofeminista Vandana Shiva. Residentes palestinos de territórios ocupados pelo Estado de Israel, segundo Angela Alonso, seriam outro exemplo do legado de Gandhi. “Qualquer resistência a uma lei ou instituição injusta configura o uso da tática da desobediência civil.”

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CRONOLOGIA DA TRAJETÓRIA DE GANDHI
Pai da independência indiana, sua imagem alinhada ao pacifismo é evocada para soft power indiano

2 de outubro de 1869
Nasce Mohandas Karamchand Gandhi, filho de um político e uma devota vishnu, no estado de Guzarete, fronteira com o Paquistão

1883
Mohandas se casa com Kasturba Gandh

1888
Mohandas parte para Londres para cursar direito, sob promessa feita à mãe de não ceder ao consumo de carne e de álcool

1889
Em Londres, Gandhi se sensibiliza com movimentos de trabalhadores e se junta à Sociedade Vegetariana de Londres

1891
Gandhi retorna à Índia

1893
Sem sucesso em montar um negócio de advocacia na Índia, ele aceita um convite de trabalho na África do Sul, onde sofre racismo

1894
Gandhi organiza uma campanha para garantir acesso de indianos ao voto na África do Sul, sem sucesso

1897
Gandhi é atacado por um grupo de colonos brancos, mas se recusa a prestar queixa

1900
Ele se junta à Guerra dos Bôeres com um grupo de voluntários que prestavam ajuda médica

1906
Mohandas participa de protestos contra Atos de Registro Asiáticos -uma lei que exigia registro de indianos e chineses na África do Sul- e adota o conceito de Satyagraha, força da verdade, raiz da resistência não violenta

1910
Gandhi funda o ashram Fazenda Tolstói, perto de Joanesburgo, com nome inspirado no romancista russo Liev Tolstói

1914
Mahatma, como ficou conhecido, foi honorífico aplicado na África do Sul e significa venerável ou de alma grandiosa

1915
Mohandas retorna à Índia

1917
Gandhi lidera o protesto não violento vitorioso no estado de Bihar no qual camponeses se levantaram contra donos de terra britânicos e autoridades locais

1919
Mohandas lança o movimento Satyagraha, baseado em resistir ao sofrimento como meio para um fim, após a Primeira Guerra Mundial; protesta contra o Ato Rowlatt, que estendeu medidas emergenciais que autorizavam detenção e encarceramento sem julgamento e revisão jurídica -em vigor durante a 1ª Guerra- diante de ameaças nacionalistas e revolucionárias indianas; funda o jornal Jovem Índia voltado para popularização da luta pela independência indiana pela via de não violência

1921
Gandhi lidera o partido CNI (Congresso Nacional Indiano) e assume o uso de um pano como veste, símbolo de identificação com os pobres

18 de março de 1922
Mohandas é preso e começa a cumprir a sentença de seis anos

1924
É solto da prisão em março

1928
Gandhi vai ao Congresso de Calcutá, onde é feito um rascunho da Constituição da Índia

1930
CNI adota programa de desobediência civil; Gandhi faz marcha pelo fim da Lei do Sal, que impedia, desde 1882, que indianos coletassem ou vendessem sal

1932
Ele inicia greve de fome pelos direitos dos dalites, casta de pessoas consideradas “impuras” pelos escritos bramânicos

1939
Início da Segunda Guerra Mundial; Índia foi implicada no conflito pelo Império Britânico sem o aval de líderes do país

1940
Resolução de Lahore em que se propunha a criação de Estados independentes em áreas de maioria muçulmana

1942
Kasturba, esposa de Gandhi, é presa. Gandhi leva a ideia de Quit India -que demandava o fim do domínio britânico do país- ao CNI e resolução é aprovada

1944
Kasturba morre na cadeia

1945
Missão de Gabinete para a Índia, em que britânicos discutiram transferência de poder para indianos e conferência de Simla, em que colonizadores encontraram indianos para aprovar plano de autogoverno indiano, com disputas entre hindus e muçulmanos

1946
Plano de Gabinete é aceito; lideranças muçulmanas emplacam protesto não violento por Paquistão independente. A ação descambou em três dias de conflito com hindus e mais de 4 mil mortos

1947
Dias 14 e 15 de agosto Paquistão e Índia celebram, respectivamente, suas independências. Gandhi faz greve de fome em protesto

30 de janeiro de 1948
Gandhi é assassinado com um tiro pelo militante hindu nacionalista Nathuram Godse, que acreditava que o líder havia favorecido muçulmanos nas negociações de independência

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