“Bandido bom é bandido morto”, mas ai de quem defender o aborto!

Carlos Henrique Carlos Henrique -
“Bandido bom é bandido morto”, mas ai de quem defender o aborto!

O versinho do título resume a hipocrisia brasileira, que tem sido reforçada pela internet, que deu voz e vez aos ignorantes. Antes do advento das redes sociais opiniões controversas se restringiam a colunas de revistas polêmicas e conversas aleatórias em pontos de ônibus. A maioria não ousava cuspir seus preconceitos de maneira indiscriminada.

Com a facilidade de viralização do Facebook os ignorantes passaram a ter público, e muitos acharam seus semelhantes, dando voz e palanque para pessoas do nível do Bolsonaro, que não se envergonha de fazer apologia à tortura em rede nacional. Não podemos esquecer também Felicianos e Malafaias, escondidos atrás do escudo chamado “igreja”, vomitam seu preconceito sem nenhum receio, ou medo de serem censurados.

Essas pessoas não se limitam a “falar o que pensam” sem se preocupar com direitos do próximo. E sua voz ganha eco com milhares que pensam como eles, e se acovardavam até então, com medo de uma reação mais crítica da sociedade. Com isso, o jargão “Bandido bom é bandido morto” nunca esteve tão em alta. Deixemos de lado a hipocrisia deste discurso, quando muitos dos que gritam esse absurdo são amigos ou parentes de bandidos e sequer se envergonham de aparecer publicamente ao lado deles. Vamos falar de outro problema ligado a ele!

Dias atrás uma criança de dez anos foi morta em uma suposta troca de tiros com a polícia. Esta semana, na reconstituição do crime, os policiais foram aplaudidos por “terem tirado um bandido de circulação”. Não vou entrar no mérito da ficha corrida do menor. Não estou aqui “para defender bandido” e nem para condenar. Vamos falar da questão como um todo. A situação é muito mais profunda do que uma análise rápida (e rasa) do tipo “bandido merece morrer” faz parecer.

O problema do Brasil é antigo, e vai além da segurança pública. Temos um problema social histórico, que começa numa colonização de exploração, passa por mais de 300 anos de trabalho escravo, desemboca em milhares de escravos libertos sem nenhuma contrapartida do governo ou de seus algozes e chega às favelas superpopulosas sem nenhuma estrutura que garanta ao menos dignidade para a grande maioria.

O nosso Estado teocrático (digo, laico), apresenta respostas fáceis para a grande maioria dos problemas. “Foi Deus que quis assim!”, “Foi Deus quem permitiu que algumas pessoas sofressem!”, “Tem muitos miseráveis que estão pagando pelos pecados de seus pais!”. Entender as causas desses problemas, e que muitas, inclusive, estão ligadas ao domínio de certas classes e famílias é o mínimo esperado, e que muitos se recusam a aceitar e admitir. Nosso racismo de cada dia é justificado por muitos discursos de ódio propagado nas escolas, ruas e igrejas (Feliciano já gritou em seu púlpito que os negros são amaldiçoados por causa de suas origens na África, lembra?).

Somos tão hipócritas que defendemos os discursos de meritocracia, nos esquecendo que o pobre que trabalha o dia todo e estuda à noite, nunca terá as mesmas chances que o jovem de classe média que passa o dia em casa, só por conta dos estudos, e está matriculado em uma escola particular que oferece diversas ferramentas para “ajuda-lo” a alcançar seus objetivos. A grande maioria branca, de classe média, que teria inclusive condições de pagar uma faculdade é contra as cotas. Só os privilegiados são contra elas, na verdade!

Chega a ser absurdo ver essas pessoas tentando justificar seu preconceito, dizendo que cotas são uma forma de discriminação. Dica de ouro do ano: NÃO! Cotas não são uma forma de discriminação, elas são uma tentativa de reparar todo o dano social sofrido por uma raça oprimida por quase 400 anos no Brasil.

Mas voltando ao nosso caso, a situação é tão absurda que somos capazes de comemorar a morte de uma criança de dez anos, celebrando “UM BANDIDO A MENOS”. A circunstância não seria tão absurda se os mesmos que estão em festa por esta morte não declarassem com tanta convicção serem contra o aborto. Os fariseus são fascinantes!

É incrível como o “Não matarás”, presente nos dez mandamentos pode ser tão seletivo. Permitir que uma mãe aborte o filho não planejado, que não terá condições de criar, e que provavelmente virará um bandido? Pecado mortal! Gritar que todo bandido tinha que morrer, inclusive quando esse bandido é uma criança de dez anos? Ah, isso é apenas desejo de justiça. Para isso só temos uma palavra adequada: HIPOCRISIA!

É engraçado ver os que esbravejam contra quem ousa ser a favor do aborto, mesmo sabendo muitas vão abortar, ou ao menos tentar, clandestinamente, correndo o risco de morrerem no processo, são contra, também, o bolsa família, que ajuda quem chega a ter o filho, a cria-lo com um mínimo de dignidade, e contra as cotas que permitem a quem cresceu na pobreza ter uma chance de melhorar sua vida, tendo uma profissão.

Hoje o Estado, embasado na opinião dos políticos religiosos, só permite o aborto em casos de estupro ou risco de morte da mãe. Nos outros casos as mães, desesperadas, sem nenhuma contrapartida do mesmo Estado, buscam meios ilegais de interromper a gravidez de um filho que não terão condições de criar. Quando não conseguem e chegam a dar à luz, abandonam a criança em um orfanato, onde vão crescer sem família, ou vínculos afetivos fortes, e serão despejadas na rua, sem nenhum preparo ou condição, quando fizerem 18 anos. Muitos vão acabar recorrendo à criminalidade. Aí a criança que não podia ser abortada, pode ser morta, de boa, pela polícia, ou algum justiceiro.

Proibimos o aborto, mas não oferecemos nenhuma condição dessa criança crescer em um ambiente saudável, livre de violência e com condições dignas de desenvolvimento. Os mesmos que gritam no congresso que o aborto é uma abominação, não movem um dedo para criar leis que garantam a esta criança um futuro decente, já que a mãe é obrigada a tê-la!

Talvez, a grande questão seja a obsessão pela vida íntima do próximo, que o brasileiro tem. O mesmo acontece com os homossexuais, por exemplo. É pecado, então ninguém pode ser, mesmo que não siga minha religião. É tão difícil entender que se você não aprova uma coisa, você deve apenas não fazer e deixar que o outro cuide da própria vida? É contra o casamento gay? Não se case com um gay. É contra o aborto? Não aborte! Essa fixação pelo o que o outro faz, na maioria das vezes em sua vida íntima, é doentia.

O problema na verdade, começa antes do ato sexual em si. É, veladamente, proibido falar de sexo em escolas. Crianças iniciam sua vida sexual cada vez mais cedo, e sem nenhuma orientação. As igrejas gritam que camisinha é pecado. Beleza, o jovem com hormônios à flor da pele, vai transar de todo jeito, e sem usar camisinha, porque o padre ou o pastor disse que é errado. Depois é só pedir perdão a Deus pela transa que tá de boa. E as DSTs e a gravidez? Ah, isso é problema do Estado!

Políticas públicas que incentivem cultura, educação e saúde em comunidades vulneráveis são raras ou inexistentes. O Brasil é o país do Futebol, e só! Não existe incentivo à prática de esportes, em geral, por exemplo. Se a criança se interessa por outro esporte, é recriminada em todos os ambientes! “Esse esporte é de viado!”, “Ah isso é coisa de mulherzinha! Homem joga é futebol!”.

As escolas sucateadas, e sem condições de oferecer um ensino de qualidade, lutam contra todas as adversidades, para formar cidadãos, mesmo com professores desvalorizados e perseguidos. Pensar em melhorar a qualidade do ensino? Jamais! A câmara se preocupa é em obrigar a ensinar o cristianismo em todas as escolas e proibir professores de falar de outras religiões, ou mesmo correntes políticas que não os agradem! Crianças com pensamento crítico não é algo desejável por quem está no poder.

O problema passa, também, pelos conselhos tutelares, com salários baixos e estrutura precária para atuarem. Às vezes sem nenhuma segurança, muitos fazem vistas grossas, ignorando ou passando a panos quentes situações absurdas, que vão resultar em aumento da criminalidade no futuro.

Segurança pública é outra fraqueza nossa. Só pensamos em repressão. Não existe um trabalho voltado à prevenção. Nossos policiais não são capacitados para lidar com demandas que exijam atenção ao invés de coação. Nossas cadeias não foram pensadas para promover ressocialização. Temos verdadeiras faculdades do crime funcionando em nossos presídios. O cara entra por furto, e sai expert em latrocínio.

Enquanto Suécia e Holanda, países com um dos maiores índices de desenvolvimento humano do planeta, fecham prisões, por falta de presos, o Brasil que tem a terceira maior população carcerária, ficando atrás, apenas, de EUA e China, fechou mais de 40 mil escolas e aumentou em mais de 200% o número de presídios nos últimos anos.

Nosso congresso, nossas câmaras, nossas prefeituras só se preocupam em agradar essa massa revoltada, com discursos vazios, aumentando presídios e reduzindo a verba da educação, cultura e esporte. Estamos indo na contramão dos países desenvolvidos que investem justamente nestas áreas para que não precisem construir cadeias.

Enquanto isso, vamos continuar gritando que aborto é pecado, e que bandido bom é bandido morto. Talvez assim, seja mais fácil dormir à noite, sabendo que desejam a morte dos maus e defendem os indefesos, mas só enquanto estão no útero de alguém. Depois que crescerem, aí pode meter bala. Tenho medo do país que estamos construindo para nossas crianças.

Bruno Rodrigues Ferreira jornalista, psicólogo, especialista em Tecnologia e Educação e Gestão em Saúde. Twitter: @ferreirabrod

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