Queda da desigualdade racial no ensino superior perde fôlego

Cenário fica visível na atualização do Índice Folha de Equilíbrio Racial

Folhapress Folhapress -
Queda da desigualdade racial no ensino superior perde fôlego
Realizado nos dias 13 e 20 de outubro, Enem pode ser a porta para reduzir a disparidade. (Foto: Bruno Santos/Folhapress)

Após uma trajetória de melhora significativa, a queda da desigualdade entre brancos e negros com ensino superior dá sinais de que perdeu fôlego.

O cenário fica visível na atualização do Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial).

A ferramenta foi criada pelos economistas Michael França, Sergio Firpo e Alysson Portella, do Insper, para medir a exclusão de pretos e pardos em estratos privilegiados, como a fatia da população com diploma universitário.

Em educação, o parâmetro dessa conta é a proporção de negros de 30 anos ou mais com nível superior completo em relação à sua representação na população, de acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE.

De 2012 a 2018, período de avanço significativo no componente educacional do Ifer, a melhora no índice foi de 2,8% ao ano. A partir de 2018, a redução do desequilíbrio racial continuou a ocorrer, mas a uma velocidade menor, de 1,6% ao ano.

Considerando-se o ritmo de melhora no índice de 2001 a 2021, a projeção é que só se chegue a um patamar de relativo equilíbrio na população em 16 anos. Já o nível de total equidade só deve ser alcançado em 34 anos.

Ao longo das últimas duas décadas, houve significativo avanço no acesso da população negra ao ensino superior, fruto de múltiplos fatores, como melhora nas taxas de conclusão do ensino médio, expansão das vagas em universidades, programas como Fies e Prouni e cotas raciais nas instituições públicas.

Ainda assim, permanece um abismo.

Em 2021, 12,1% da população negra com 30 anos ou mais tinha nível superior, índice quase quatro vezes maior do que o de duas décadas atrás, mas ainda menor do que o da população branca há 15 anos.

Quando se adota um olhar regional, o Sudeste segue como a região que mais freia a redução da desigualdade na área, com melhora do componente educacional do Ifer de apenas 5,3% de 2018 a 2021. No Norte, a região menos populosa e com mais equilíbrio racial no país, o avanço foi de 20,6%.

De 2020 para 2021, o Nordeste ultrapassou o Centro-Oeste por pouco e passou a ocupar a segunda posição de maior equilíbrio na educação.

Em quarto e quinto lugar, na situação de maior desequilíbrio, estão Sul e Sudeste.

Entre os estados, os que têm situação de maior equidade no componente educacional do Ifer, não à toa, estão predominantemente no Norte: Amapá, que já se encontra no patamar de relativo equilíbrio, seguido por Acre e Rondônia, muito próximos dessa situação.

Já os estados com maior desequilíbrio são Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.

Nesse ritmo, a projeção é que Sul e Sudeste só atinjam o patamar de relativo equilíbrio na educação em 19 e 23 anos, respectivamente, e de total equilíbrio em 52 e 44 anos.

Já o Norte poderia atingir relativo equilíbrio em apenas um ano, e o Nordeste e o Centro-Oeste, em cinco. Total equidade viriam em, respectivamente, em 19, 20 e 21 anos.

Como o Ifer observa a população com pelo menos 30 anos, para se ter uma ideia melhor do futuro é preciso olhar a fotografia atual da educação. E ela mostra que há ainda muitos desafios na direção da equidade racial.

Em 2020, 79,1% dos jovens brancos de 19 anos tinham concluído o ensino médio. Entre os pretos e pardos, a proporção era de 61,4% e 63,9%, respectivamente.

Em 2021, a proporção de matrículas na rede privada com algum tipo de financiamento na educação superior atingiu o menor patamar desde 2013, segundo o Censo do Ensino Superior 2021.

A rede particular é responsável por 76,8% das matrículas no setor, e o financiamento é fundamental para que jovens de baixa renda sem acesso à universidade pública possam obter um diploma.

Como se não bastasse, de 2019 a 2021, a proporção de pretos e pardos entre os inscritos para o Enem, que dá acesso à universidades, caiu de 58% para 51,8% após a pandemia do coronavírus e a imposição restrições à isenção da taxa de inscrição pela gestão Jair Bolsonaro (PL).

Um dos idealizadores do Ifer, França acrescenta dois fatores de preocupação para o futuro: a lacuna de desempenho escolar entre brancos e negros na educação básica, que permanece e em alguns casos inclusive aumenta, e o congelamento das bolsas nas universidades, que afasta os alunos de baixa renda.

LEGADO DA ESCRAVIDÃO INFLUENCIA ATÉ HOJE ABISMO

O índice criado pelos economistas do Insper para o jornal Folha de S.Paulo é um número que pode oscilar entre -1 e 1, em que zero equivale a um cenário no qual a presença de brancos e negros nos recortes analisados reflete exatamente seu peso na população usada.
O índice se restringe à comparação entre brancos e negros -grupo que inclui pretos e pardos- devido à dificuldade de incluir indígenas e amarelos, que representam uma pequena fatia da população.

Números negativos no Ifer indicam que os negros estão sub-representados em relação ao seu peso na população. Números positivos indicam sub-representação dos brancos.

Atualmente, o índice do país é de -0,375. Em 2001, era -0,598.

A metodologia foi, inicialmente, desenvolvida por Firpo, França e Lucas Cavalcanti Rodrigues para medir a desigualdade na presença de negros e brancos no mercado de trabalho formal.

Defendida em 2021 na Faculdade de Economia e Administração da USP, a tese de doutorado de Rodrigues mostrou resultados reveladores sobre as raízes da desigualdade racial na educação.

Cruzando listas de chamada das escolas com o censo da cidade de São Carlos (SP), ele mostrou que, 20 anos após a abolição da escravidão, havia na cidade no início do século 20 uma relevante presença de crianças negras nas escolas rurais (para as quais há dados disponíveis).

“A tese mostra que a população negra se esforçou para colocar os filhos na escola mesmo sob um ambiente de violência racial muito forte”, diz Rodrigues.

A chance de uma criança negra ser matriculada era ainda consideravelmente maior quando a mãe era alfabetizada.

O problema é que mulheres negras, pelas barreiras de gênero somadas à escravidão, eram o grupo com menores níveis educacionais à época.

Tanto elas como os homens negros tinham taxas de alfabetização significativamente menores que as de imigrantes europeus à época. E aí a ausência de democracia teve um peso significativo.

Rodrigues lembra que só na década de 1980 o voto dos analfabetos foi permitido no período republicano brasileiro.

“As pesquisas mostram que, em boa medida, o orçamento público reflete as demandas de quem vota”, ressalta Rodrigues. É por isso que, embora houvesse demanda da população por ampliação da escola pública em São Paulo no início do século 20, isso não se refletiu no investimento estatal.

“A ausência de democracia no período pós-abolição impediu que se revertesse o legado da escravidão”, afirma.

Você tem WhatsApp ou Telegram? É só entrar em um dos grupos do Portal 6 para receber, em primeira mão, nossas principais notícias e reportagens. Basta clicar aqui e escolher.

PublicidadePublicidade