‘Não tem game falando de amor, é game ensinando a molecada a matar’, diz Lula sobre ataques
O presidente mencionou o fato de que crianças de 8 anos a 12 anos estão habituadas a passar grande parte do tempo "jogando essas porcarias"
PAULO SALDAÑA
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou nesta terça-feira (18) o contato exagerado de crianças a jogos digitais ao relacionar essa prática aos ataques e ameaças que têm ocorrido em escolas no país. Lula ressaltou o papel das redes digitais na disseminação do discurso de ódio e a importância da família na relação com os filhos.
“Temos que pensar o que eu ensino para o meu filho dentro de casa. Quando meu filho tem 4 anos ele chora, o que eu faço pra ele? Dou logo um tablet pra ele brincar, ensino logo um joguinho”, disse o presidente durante encontro com representantes dos Três Poderes para tratar do tema no Palácio do Planalto.
“Não tem jogo, não tem game falando de amor, não tem game falando de educação. É game ensinando a molecada a matar. E cada vez muito mais morte do que na segunda Guerra Mundial. É só pegar o jogo dessa molecada”.
O presidente mencionou o fato de que crianças de 8 anos a 12 anos estão habituadas a passar grande parte do tempo “jogando essas porcarias”.
Uma suposta relação entre games violentos e casos de ataques nas escolas tem sido abordada há décadas, mas pesquisas sempre concluíram não haver causalidade, como explica o educador Alexandre Le Voci Sayad, copresidente da Aliança global da Unesco para educação midiática.
“Várias pesquisas, como uma feita em Oxford, não vêm causalidade direta de jogos violentos nesses episódios. A vida real para o jovem são as duas coisas, é o digital e o físico”, diz. “Tecnologia digital é linguagem e maneira de os jovens verem o mundo e se expressarem”.
Sayad pontua que, ao contrário do que disse Lula, há muitos jogos educativos e eles têm tido um papel muito mais positivo na educação do que causado violência.
“O que pode fazer sentido dessa colocação seria a imersão do jovem no meio digital em excesso, de tempo e intensidade, ao abrir mão da socialização e da descoberta de questões importantes da juventude na vida física e ficar mais tempo no jogo. E isso poderia gerar comportamentos fora dos padrões ou acirrar alguma coisa”, completa
Para Sayad, o discurso de Lula amplifica uma tendência de tentar achar um culpado, um bode expiatório, para um problema complexo. “Uma coisa que deveria ser dito é a falta de conexão do jovem com a escola”.
Em 2019, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump também relacionou os games a massacres ocorridos em escolas na época. Pesquisa da Universidade Oxford divulgada no início daquele ano mostrou que não há essa relação.
“Nesse estudo, investigamos até que ponto adolescentes que passam um tempo jogando videogames violentos exibem níveis mais alto de comportamento agressivo […] Testou-se a hipótese de que o jogo violento é relacionado ao comportamento agressivo. Os resultados não confirmam essa ideia.”
Uma pesquisa do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), finalizado no ano passado, indicou que o uso problemático de videogames afeta 28% dos adolescentes, com prejuízo para atividades como estudar e comer.
A fala de Lula sobre os games causou uma série de reações nas redes sociais, de críticas à culpabilização dos videogames no cenário de aumento de ataques nas escolas no Brasil. Um dos filho de Lula, Luis Cláudio, publicou nas redes sociais mensagem em que defende os jogos como entretenimento.
“Meu pai viu os filhos e os netos crescerem jogando videogame, ele sabe que isso não nos tornou violentos, ele fez uma declaração sobre um assunto polêmico ao vivo e acabou generalizando. Vídeo game é muito mais que violência, é arte, é lazer, é entretenimento”, publicou no Twitter.
Em agosto de 2022, antes das últimas eleições, Lula publicou nas redes sociais um afago ao setor de games, em um discurso diferente do proferido nesta terça.
“Videogame não é apenas entretenimento, é também cultura, emprego e desenvolvimento tecnológico. Ontem gamers apresentaram propostas para o nosso Programa de Governo, pedindo políticas públicas que fortaleçam o setor de jogos eletrônicos no Brasil”, escreveu no Twitter.
No evento no Palácio do Planalto, Lula disse que há necessidade de discutir o tema com as famílias, “porque a família tem de estar envolvida nesse processo” e precisa ter responsabilidade.
“Quando uma criança acha que uma arma é solução, por que ela acha isso? Ela viu na Bíblia? Não. No livro escolar? Não. Ela ouviu do pai dentro de casa, ou da mãe. E é por isso que tem de ter em conta que sem a participação dos pais não se recupera o processo educacional nas escolas”, disse Lula.
Segundo o presidente, não faz sentido apenas aumentar os aparatos de segurança nas escolas sem atacar as motivações.
“Não vamos transformar as nossas escolas em uma prisão de segurança máxima”, disse.
Ele também reforçou a necessidade de regulação das redes digitais, tema levantado por vários das autoridades presentes, como o ministro da Educação, Camilo Santana, e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes.
“Nós temos que ter coragem de discutir a diferença entre liberdade de expressão e cretinice, ou não vamos chegar muito à frente.”
No início do mês, um homem entrou em uma escola particular em Blumenau (SC) e matou quatro crianças. O caso ocorreu nove dias após o ataque à escola estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, quando um aluno de 13 anos matou uma professora a facadas e feriu outras cinco pessoas, entre elas três docentes.
Supostas ameaças de ataques têm alterado a rotina de escolas pelo país. Apesar de a maioria das mensagens ser falsa, pais, alunos e professores relatam medo, e especialistas orientam denunciar casos para autoridades.
O governo anunciou um pacote de ações para melhorias na segurança de escolas, o que inclui a liberação de R$ 3 bilhões de recursos do MEC (Ministério da Educação). A maior parte trata-se de recursos já previstos no orçamento.