Taiwan recorda Massacre da Praça da Paz Celestial enquanto teme pelo futuro

Por três décadas, a data foi trazida à memória em Hong Kong

Folhapress Folhapress -
Taiwan recorda Massacre da Praça da Paz Celestial enquanto teme pelo futuro
Massacre da Praça da Paz Celestial, ocorrido em 1989. (Foto: Reprodução/YouTube BBC Brasil)

NELSON DE SÁ

TAIPÉ, TAIWAN (FOLHAPRESS) – A celebração do 4 de Junho, o dia em que os protestos por democratização na Praça da Paz Celestial foram violentamente reprimidos em Pequim, em 1989, passou de Hong Kong para Taipé, em Taiwan, em torno das apresentações de uma peça teatral, “35 de Maio”.

Por três décadas, a data foi trazida à memória em Hong Kong. Mas as manifestações na cidade a partir de 2019 e, no ano seguinte, a implantação de uma rigorosa lei de segurança nacional por Pequim –além do início da pandemia de Covid-19– acabaram com qualquer ato que relembrasse o marco.

Foi também em 2019 que estreou em Hong Kong a peça “35 de Maio”. A data inexistente é usada na restrita mídia social chinesa para escapar da censura automática à expressão “4 de Junho”. É uma história sobre a supressão da própria memória da data.

A reportagem acompanhou a apresentação lotada deste domingo (4) no teatro Wanzuo Xiao, no sudoeste de Taipé. Durante duas horas, a mãe de um jovem morto na praça Tiananmen conversa com o marido sobre o desejo e os planos de ir até o local prantear o filho. O pai é contra.

Não era mais permitido voltar à praça. As mães são obrigadas a ir ao cemitério de Wan’an, em Pequim, para isso. O diretor Po Yuan Chung, 38, conta que a autora da peça, Chong Mui Ngam, pesquisou os arquivos da organização Mães de Tiananmen para criar a trama e os personagens.

A entidade foi formada em setembro de 1989, do encontro de duas mães –e um pai– de filhos mortos três meses antes. O nome remete às Mães da Praça de Mayo, associação formada uma década antes na Argentina por familiares de mortos pela ditadura militar.

A apresentação era em mandarim, não no cantonês original, mas foi possível comprar uma edição bilíngue em inglês, recém-publicada. Siu Lum, a mãe, anuncia na primeira cena que, com câncer e poucos meses de sobrevida, não vai mais aceitar as restrições levantadas pelo marido.

“Eu vou para a praça, sim, a coisa que você mais teme”, diz ela, em desafio a Ah Dai, de família ligada ao Partido Comunista Chinês, mas também ele triste pelo filho. “Eu vou para a praça, para o lugar onde o meu Chit foi espancado até a morte. E vou chorar um senhor bom choro.”

Impedida, porém, por obstáculos como um cunhado comunista e o avanço da doença, porém, a mãe não cumpre seu desejo. Por fim, Ah Dai vai em seu lugar, sendo aparentemente preso no caminho. Siu Lim fantasia então que o marido chegou, sim, a Tiananmen, acendeu velas ao vento e está pranteando o filho.

“Eu sou o que transcende”, diz ela. “Seu amor me levou à praça. Enfim não preciso imaginar, vejo a solidão da praça: três velas e um velho. Trinta anos sem saber dos vivos ou dos mortos, os vivos ousam esquecer, os que partiram se afastam. Onde estou é a solidão de nossos tempos.”

A apresentação, com passagens cômicas, mas dramática a maior parte do tempo, emocionou alguns espectadores. “Achei que foi muito chocante”, diz a atriz Sophia Hsieh, 23. “Por duas horas, com dois atores brilhantes expressando tanta coisa. A raiva daquilo bate em você.”

Ela diz que a apresentação remete não só a Pequim ou Hong Kong, mas “leva a pensar sobre a situação de Taiwan”. É uma história “delicada, sensível, mas que vai mais fundo porque você pensa sobre o seu futuro. Muita gente da plateia se relaciona com ela. Isso é incrível”.

A documentarista Yun, 24, que deu apenas o primeiro nome, explicando que seu pai trabalha em Pequim, comentou sobre o tema de “35 de Maio” que “o governo da China precisa se concentrar nisso, estar aberto para discutir sobre isso”.

Em Hong Kong, no sábado (3), Lau Ka-yee, uma integrante do grupo Mães de Tiananmen, foi detida com outros manifestantes ao chegar ao Victoria Park para protestar. O local se tornou um ponto tradicional em que os honcongueses tinham a liberdade para acender velas em memória das vítimas do Massacre da Praça da Paz Celestial –agora não têm mais. Lau Ka-Yee, ao ser detida, tinha sobre a boca uma fita adesiva vermelha e uma camiseta estampada com a palavra “verdade”, em caráter chinês.

Horas antes, também no sábado, uma leitura dramática de “35 de Maio”, no original em cantonês, tinha sido feita por atores de Hong Kong no teatro Wanzuo Xiao, em Taipé. Estavam com rostos cobertos e não tiveram nomes divulgados, pelo medo de retaliação ao voltar para casa.

Questionado sobre levar a Hong Kong a montagem em mandarim ou uma outra, o diretor Po Yuan Chung diz que não é possível. Embora não tenha havido censura explícita, ele não tem dúvida de que a peça está proibida, assim como em Pequim.

Sublinha ter aproximado, na encenação, as memórias de Taiwan às de Tiananmen. “A trilha foi escolhida das músicas que eram banidas aqui”, diz, explicando que “a situação de Taiwan era similar” e, um ano depois, manifestações estudantis abriram caminho para eleições.

Além das apresentações da peça, que começaram na sexta, os eventos em Taipé incluíram uma exposição e uma vigília com leitura de poemas. E a presidente Tsai Ing-wen publicou mensagem em mídia social, dizendo que “a força bruta não pode apagar as memórias das pessoas”.

Em Hong Kong, dezenas de pessoas foram detidas neste domingo (4). Segundo a polícia, por “intenção sediciosa” e “violação da ordem pública”. Para as Mães da Praça Tiananmen, mais um lembrete de que a angústia não acaba. “Embora 34 anos tenham se passado, para nós, familiares dos mortos, a dor de perder nossos entes queridos naquela noite nos atormenta até hoje”, disse o grupo em comunicado.

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