Lula reconhece violações de direitos humanos sob resistência militar e ceticismo de famílias

MDHC também pretende iniciar no ano que vem a realização de atos públicos de pedidos de desculpas

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Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)Lula reconhece violações de direitos humanos sob resistência militar e ceticismo de famílias
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

ITALO NOGUEIRA

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O governo Lula mudou neste ano a forma de atuação do Executivo brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconheceu parcialmente responsabilidades e pediu desculpas públicas em três casos em que o país é julgado por violação de direitos fundamentais.

O MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania) também pretende iniciar no ano que vem a realização de atos públicos de pedidos de desculpas determinados pela corte em seis casos com sentenças já publicadas.

A mudança de postura e as intenções da pasta, porém, são vistas com ceticismos por familiares de vítimas e seus representantes.

Eles consideram que os reconhecimentos nas audiências são limitados e cobram cumprimento de outras penas da corte, como a punição e a adoção de políticas públicas para impedir a repetição de violações.

As cerimônias de pedido de desculpas também enfrentam resistência das Forças Armadas nos casos que envolvem o período da ditadura militar (1964-1985). Além disso, a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, por exemplo, vem sendo protelada para não aumentar a tensão com os militares.

Estão entre as condenações a falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e pelo desaparecimento e morte de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia (1972-74).

Os casos na Corte Interamericana de Direitos Humanos versam também sobre conflitos fundiários, morte de defensores dos direitos humanos e violência policial, entre outros temas.

As condenações se referem a casos ocorridos entre a ditadura e a década de 1990, mas não foram solucionados pelo poder público ao longo do tempo, motivo pelo qual as famílias recorreram à corte internacional.

Desde o início do ano, o MDHC pagou cerca de R$ 35 milhões em indenizações determinadas pela corte, mas represadas durante a gestão Jair Bolsonaro (PL). Também cumpriu pontos resolutivos como a publicação de sentenças no Diário Oficial e jornais.

A mudança mais simbólica, contudo, são os reconhecimentos parciais perante os juízes durante as audiências de julgamento.

O reconhecimento parcial e o pedido de desculpas ocorreram nos casos dos quilombolas afetados pela base de Alcântara, das mães de Acari e de duas mulheres negras que sofreram discriminação racial no trabalho com demora na punição dos responsáveis.

O posicionamento não é inédito, mas uma mudança em relação ao padrão adotado pelo governo desde o segundo mandato de Lula até a gestão Bolsonaro, passando pelos governos Michel Temer e Dilma Rousseff.

O único caso em que o Brasil reconheceu parcialmente a violação de direitos humanos foi o movido pela família de Damião Ximenes Lopes por maus-tratos e morte dentro de um hospital psiquiátrico. Esta foi a primeira condenação do país na corte. Desde então, nos 11 casos seguintes, o país não reconheceu as violações de que foi acusado, tendo sido condenado em 10.

No caso das mães de Acari, o governo reconheceu apenas a violação pela morte de Edmea Euzébio e Sheila Conceição, mas não pelas falhas nas investigações da chacina que vitimou 11 jovens da favela da zona norte do Rio de Janeiro dois anos antes. Edmea foi morta quando lutava pela punição dos policiais militares suspeitos pelos homicídios.

“O reconhecimento que fizeram foi insuficiente. O caso da Edmea eles reconheceram porque não tinha como dizer não. Até hoje sete famílias não têm certidão de óbito. Além dos 33 anos de espera, são décadas que vêm carregadas de dor para todas as famílias sem o reconhecimento”, disse Aline Leite, irmã de uma das vítimas da chacina.

O coordenador da ONG Justiça Global, Eduardo Baker, afirma que os reconhecimentos só serão positivos caso sejam acompanhados do cumprimento de pontos resolutivos determinados pela corte que preveem políticas públicas para evitar a repetição das violações.

“Se o reconhecimento for o primeiro passo para essa direção [medidas de não repetição], é positivo. Mas se na hora de gerar essas medidas o Estado embarreirar a aplicação, tem pouca valia. Sou um pouco cauteloso e relutante de estarmos indo para uma direção melhor. Mas precisamos investir no espaço que está aberto”, disse Baker, que acompanhou o caso Alcântara.

O Brasil concluiu neste ano o cumprimento dos pontos resolutivos do caso Ximenes Lopes. O arquivamento ocorreu após a implementação de um curso permanente de capacitação em direitos humanos e saúde mental pelo MDHC.
Isabel Penido, coordenadora-geral dos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos do ministério, afirma que os reconhecimentos parciais e o cumprimento de alguns pontos resolutivos são uma forma de recuperar a credibilidade do governo junto aos familiares das vítimas.

“Eu acho que os peticionários [familiares] tinham uma expectativa que a gente conseguisse resolver as coisas mais rápido. Eu acolho, entendo e escuto bastante sobre isso. O nosso discurso não é esse de só entrega, entrega, entrega. A gente tem também uma perspectiva crítica, mas eu estou otimista”, disse ela.

A coordenadora para Brasil e Cone Sul do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), Helena Rocha, afirma ver uma “mudança no balanço de poder” das instituições brasileiras envolvidas nos julgamentos na corte. Para ela, o MDHC conquistou mais espaço frente à AGU e o Itamaraty na atuação desses casos.

“A AGU tinha um posicionamento de defesa de todos os pontos até o último recurso. Mesmo sem fundamentos e argumentos, apresentava contraposição. Essa defesa formal muitas vezes entrava em contradição com o posicionamento público das autoridades brasileiras. O MDHC ganhou um protagonismo maior”, disse Rocha.

O procurador da União de Assuntos Internacionais da AGU, Boni Soares, afirma que o reconhecimento se dá caso a caso, desde que com segurança jurídica para o país.

“Essa análise é caso a caso. Reconhecemos nesses casos porque havia segurança jurídica, porque eram fatos que se provaram [reais]. Ainda que tenhamos segurança jurídica, há um novo governo que tem essa vertente e concorda com esse tipo de postura no processo. Eles entram com a vontade política de fazer e nós, com a segurança jurídica para tornar aquilo viável”, disse ele.

Soares afirmou que pretende fazer com que reconhecimentos ocorram antes dos casos chegarem à corte, quando ainda estão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que faz uma espécie de triagem para a admissibilidade dos casos. “Espero ter, daqui a alguns anos, mais acordos do que sentenças.”

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

O que é: a Corte IDH foi criada pelo Pacto de São Jose (Costa Rica), assinada por 20 países, entre eles o Brasil. Ele criou, entre outros dispositivos, um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos. Nele, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) recebe as denúncias de violações e, caso cumpridos os requisitos, apresenta os casos para julgamento na Corte IDH.

CASOS EM QUE O BRASIL RECONHECEU EM 2023 VIOLAÇÃO DO PAÍS

Caso Quilombolas de Alcântara – Quilombolas de Alcântara (MA) acusam o Brasil de retardar a demarcação das terras localizadas na área usada para a construção da base para lançamento de foguetes. Afirmam também que a obra obrigou ao deslocamento do nativos, bem como inviabilizou o acesso deles ao mar e à subsistência pela pesca. Governo reconheceu apenas a demora na demarcação e terras

Mães de Acari – Policiais civis e militares sequestraram e mataram um grupo de 11 jovens, moradores da favela de Acari, de um sítio em Magé em 1991, e jogaram seus corpos num rio. Dois anos depois, Edméa Euzébio, líder do movimento “mães de Acari”, foi assassinada junto com Sheila Conceição após testemunhar contra policiais. A chacina ficou sem punição porque as vítimas não foram localizadas e acabou prescrito, enquanto o homicídio de Edmea e Sheila ainda segue em julgamento. Governo reconheceu a violação apenas no caso da morte de Edmea e Sheila.

Caso Dos Santos e Ferreira – Duas mulheres acusam o Brasil de racismo judicial pela demora na conclusão de um processo contra uma empresa por prática discriminatória. Elas se candidataram a uma vaga de emprego em 1998, mas foram recusadas sob alegação de que a vaga havia sido preenchida. Contudo, horas depois uma mulher branca se candidatou e conseguiu o posto. Brasil reconheceu a demora na conclusão do processo judicial, mas não o racismo na Justiça.

PRINCIPAIS CASOS DO BRASIL NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Caso Herzog – Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog apareceu morto em uma cela do Doi-Codi, órgão de repressão do governo militar. A versão oficial dizia que o jornalista tinha cometido suicídio, enforcando-se com um cinto do macacão de presidiário. Várias evidências, porém, apontavam para que o jornalista tinha sido torturado e morto pelos agentes militares. Herzog era militante comunista ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro).

Brasil foi condenado em 2018 a, entre outras medidas, reiniciar investigação e processo penal sobre o caso. A medida depende de revisão da Lei de Anistia.

Caso Guerrilha do Araguaia – Núcleo de militantes do PC do B (Partido Comunista do Brasil) instalados desde 1966 na região do rio Araguaia foi descoberto em 1971 pela ditadura militar, que fez três investidas contras os rebeldes. As ações levaram ao desaparecimento de 62 pessoas, cujos restos mortais nunca foram localizados.

Brasil foi condenado em 2010 a, entre outras medidas, reiniciar investigação e processo penal sobre o caso e buscar o paradeiro das vítimas desaparecidas, pontos resolutivos ainda não cumpridos

Caso Nova Brasília – Policiais militares promoveram duas chacinas em 1994 e 1995 na favela Nova Brasília, localizada no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, nas quais 26 pessoas foram mortas. Investigações apontaram execuções extralegais feitas por policiais, além de estupros contra três jovens da comunidade.

Brasil foi condenado em 2017 a, entre outras medidas, punir os responsáveis pela chacina, criar mecanismos para investigação independente sobre crimes cometidos por policiais e estabelecer metas para redução de letalidade no Rio de Janeiro, todos ainda não cumpridos, na avaliação da corte.

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