Cidade mais nova do Brasil nasce rica em MT e vira consultora de separatistas
Área de 300 mil hectares já é consolidada e, além de soja, futuro município produz milho, algodão e feijão
MARCELO TOLEDO
O trecho rodoviário de 132 km entre Sorriso e sua “filha”, Boa Esperança do Norte (MT), dá uma dimensão de como nascerá a nova cidade brasileira, criada após uma batalha jurídica de mais de duas décadas: cercada de soja por todos os lados, ela deverá se tornar em poucos anos em uma das mais ricas cidades do agronegócio no estado.
Próxima à rodovia MT-140, ela incorporará áreas em plena produção de Sorriso e Nova Ubiratã, ambas potências do agro e que figuram na primeira e sexta posições entre os municípios mais ricos do segmento no país.
Maior produtor de grãos do Brasil , Sorriso cederá cerca de 20% do total da área da nova cidade, enquanto Nova Ubiratã, que foi à Justiça em 2000 contra a emancipação, caberá os outros 80%.
Vice-prefeito de Sorriso, Gerson Bicego (PL) diz que a cidade apoiou a proposta de emancipação pelo potencial que Boa Esperança tem, por já estar consolidada e também pela dificuldade que a distância do distrito até a sede causa para a manutenção dos serviços públicos.
“Sorriso vai ficar com 580 mil hectares de soja, para 110 mil habitantes. Eles [Boa Esperança] vão ficar com quase 300 mil hectares para 7.000 habitantes. Então você imagine a potencialidade que vai ter um município desse, a força econômica”, disse Bicego.
Essa área de 300 mil hectares já é consolidada e, além de soja, a futura cidade produz milho, algodão e feijão e tem visto o desenvolvimento da pecuária, numa área total de 480 mil hectares.
“Talvez, na época, [a decisão da criação] traria um impacto maior ao município de Nova Ubiratã, acredito que hoje é praticamente insignificante pela pujança que tem Nova Ubiratã, não preciso nem falar da potência deles. Na época, a região de agricultura desenvolveu primeiro na nossa região aqui, e Nova Ubiratã tinha uma característica mais madeireira”, disse Calebe Francio, subprefeito de Boa Esperança e que está à frente do processo de emancipação.
A estimativa de envolvidos com a emancipação é a de que Nova Ubiratã perderá algo entre R$ 20 milhões e R$ 21 milhões anualmente em impostos. A Folha procurou a prefeitura, mas não houve resposta ao pedido de entrevista.
Bicego admite que a cidade vizinha sentirá mais os efeitos que Sorriso. “A briga está ali [no tamanho da área a ser cedida].”
Francio disse que, desde o anúncio da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) pela emancipação, tem recebido ligações de outros distritos em busca de informações para tentativas de também serem transformados em municípios. Mas disse que tem desestimulado os interessados.
“É um caso esporádico, atípico do Brasil […] Hoje não há regulamentação do governo federal. [Quando me procuram] digo ‘calma, gente, é uma realidade diferente'”, afirmou ele, que aguarda um acórdão do STF sobre os próximos passos para a instalação de Boa Esperança.
Só no Amazonas há pelo menos uma dezena de distritos que querem se tornar municípios, mas eles esbarram na legislação.
A Constituição previa que a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios deveriam ocorrer por meio de leis estaduais.
Isso, porém, fez com que houvesse o surgimento em massa de cidades, tanto que 1 em cada 5 no país surgiu após 1988, e em 1996, uma emenda condicionou a criação à aprovação de uma lei federal que analisaria a viabilidade.
O Congresso aprovou normas para regulamentar a questão, mas foram vetadas pelo Executivo. O último veto ocorreu em 2014, na gestão Dilma Rousseff (PT).
Uma outra emenda, em 2008, convalidou os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios cuja lei tivesse sido publicada até 31 de dezembro de 2006, desde que atendidos os demais requisitos estabelecidos na legislação estadual na época da criação -63 municípios foram regularizados com a medida.
Uma das regras é a de que o novo município tenha, no caso do Norte e Centro-Oeste do país, ao menos 6.000 habitantes, caso de Boa Esperança do Norte.
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) apresentou, em 2019, uma proposta que podia resultar na fusão de municípios que não tivessem autonomia financeira a cidades vizinhas a partir de 2025.
Pela proposta, cidades com menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total teriam que fundir a estrutura a outras.
A medida atingiria 1.220 cidades, conforme a CNM (Confederação Nacional dos Municípios). A proposta gerou descontentamento de deputados federais e senadores e acabou sendo abandonada.
‘EMANCIPAR SIM, SEPARAR NÃO’
A campanha pela emancipação de Boa Esperança do Norte é visível nas ruas da futura cidade e nas conversas com moradores.
Tranquilas, apresentam movimento muito pequeno, marcado predominantemente por camionetes dos fazendeiros do entorno de casas agropecuárias e concessionárias de máquinas agrícolas e pelo deslocamento de estudantes a pé ou em bicicletas. São cerca de mil, nas redes estadual e municipal.
Há uma grande praça esportiva, cercada por trailers, e uma avenida principal, que recebeu enfeites natalinos -mais singelos que os expostos em Sorriso- e que ostenta pinturas com os dizeres “Emancipar sim, separar não”.
A futura cidade apresenta gargalos como ter muitas ruas de terra e por só ser possível usar celular de uma operadora, TIM.
O eletricista Marcos Carvalho Leão, o Marquinhos, chegou a Boa Esperança há exatos 23 anos, com a expectativa da emancipação. Dono de uma mercearia, aberta há seis anos no atual local, ele disse que a economia local vai melhorar muito agora com a emancipação.
“Quem quiser trabalhar prospera. Consegui comprar terrenos, tenho um barracão alugado, a mercearia e três caminhões para puxar soja na safra”, disse.
Um dos seus terrenos, com quase 600 metros quadrados, está avaliado em R$ 250 mil, segundo ele, cinco vezes mais do que os valores praticados até cerca de cinco anos atrás.
O único posto de combustíveis do atual distrito funciona das 5h30 às 21h, o que exige que motoristas que precisam se deslocar para Sorriso tenham uma programação de abastecimento.
“Não pode sair a qualquer hora e achar que vai chegar lá [Sorriso] com pouca gasolina, até porque telefone não funciona direito na rodovia. Isso deve mudar muito em dez anos, é o que esperamos”, disse o motorista Jean Carlos Fraga, enquanto sua camionete era abastecida.
Francio, que deve disputar a eleição à prefeitura no ano que vem, afirmou que a localidade está longe de ser apenas um distrito.
“Tem cartório, dois bancos, é uma cidade dentro de outra cidade […] Fomos obrigados a viver esses 23 anos mesmo com todas as dificuldades, então solidificamos nossa sociedade, o comércio ficou forte, nossa agricultura ficou de ponta e até as próprias lideranças políticas hoje têm a maturidade, hoje é um senso de união muito grande aqui”, disse.
O hoje distrito, quando tornar-se município efetivamente, terá incorporados dois distritos, Piratininga e Água Limpa, hoje integrantes de Nova Ubiratã.
O governador Mauro Mendes (União Brasil) foi procurado, mas não quis comentar o tema. Quando o STF decidiu pela oficialização de Boa Esperança do Norte, ele disse ver com “reserva” a decisão.
Entre as mudanças que deverão ocorrer está o efetivo de segurança pública. Sorriso figura como uma das cidades com maiores taxas de mortes violentas intencionais do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e perder parte do efetivo policial para o novo município seria prejudicial.
Secretário da Segurança de Mato Grosso, César Augusto Veri disse que haverá cursos de formação (Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros) no decorrer de 2024 e que eles serão usados na composição do novo município.