Redes comunitárias atendem parte dos 30 milhões de brasileiros ainda desconectados
Conexão não é algo simples de se conseguir em meio a uma topografia irregular, onde morros, vales, árvores e até nuvens podem atrapalhar o sinal
DANIELE MADUREIRA
MONTEIRO LOBATO, SP (FOLHAPRESS) – O ritual se repetia todas as manhãs. Carolina Ribeiro Defino, 35, acordava por volta das 7 horas e fazia uma caminhada de cerca de 300 metros. “Como tinha que subir o morro, dava a impressão de andar 1 quilômetro”, brinca. Nas mãos, levava o celular, em busca de um sinal de internet.
Em meio a vacas e galinhas da propriedade rural vizinha à sua casa, onde estava instalada uma antena, ouvia os recados da véspera, tentava ligar para a família, um amigo ou um contato de trabalho. Descia o morro. Só voltaria a ficar conectada no dia seguinte.
As imponentes montanhas que circundam Monteiro Lobato (SP), cidade de pouco mais de 4.000 habitantes, a cerca de 130 quilômetros da capital paulista –onde viveu o autor dos personagens do “Sítio do Picapau Amarelo” e de Jeca Tatu, retratado em “Urupês”– são um empecilho para o sinal de celular.
Conexão não é algo simples de se conseguir em meio a uma topografia irregular, onde morros, vales, árvores e até nuvens podem atrapalhar o sinal.
“No começo, achei bom”, diz ela. “Morei muitos anos em São Paulo, trabalhei em banco, era muita correria, muita informação. Eu queria mesmo ficar no meio do mato”, afirma Carolina, formada em ciências econômicas, que trocou de carreira quando se mudou para Monteiro Lobato.
Como produtora cultural, ela voltava para São Paulo apenas aos fins de semana para trabalhar.
Em 2018, porém, Carolina percebeu que começava a perder alguns contatos de trabalho por falta de conexão. Ao mesmo tempo, o marido, Tiago, estava querendo fazer cursos online e precisava de internet.
“Assinamos um provedor local, eram R$ 150 por mês nos seis primeiros meses, mas depois a mensalidade foi a R$ 300, muito caro. Ficamos só um ano com eles”, lembra Carolina.
Em 2019, ela soube que algumas pessoas do bairro dos Souzas, onde morava, a cerca de 7 quilômetros do centro de Monteiro Lobato, tinham se articulado para criar uma rede comunitária que provesse acesso aos moradores. O custo era de R$ 30 por mês, para manutenção.
“Melhorou muito a nossa vida, passamos a contar com acesso à internet dentro de casa por um baixo custo”, diz ela, hoje professora do Instituto Pandavas, de educação infantil e ensino fundamental.
Na pandemia, conseguiu manter contato com as crianças e transmitir parte do conteúdo online. Hoje, conta com um provedor de internet para o celular e o sinal da rede comunitária.
Em pleno século 21, 29,4 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, o equivalente a 16% da população com 10 anos ou mais, de acordo com o estudo TIC Domicílios 2023, elaborado pelo CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil).
O número é bem inferior aos 49% observados em 2015, mais continua expressivo.
Os motivos são principalmente econômicos: em 55% dos lares sem acesso à internet, os entrevistados apontam o alto custo como principal fator para a ausência de conexão.
Como parte desse público vive em áreas de difícil acesso, as grandes empresas provedoras de internet não têm interesse em instalar infraestrutura para atender uma demanda reduzida. Ao mesmo tempo, pequenos provedores locais cobram caro para levar o sinal de internet a regiões distantes da cidade.
A mensalidade de R$ 300 paga por Carolina, por exemplo, equivale a mais de 20% do ganho médio dos moradores de Monteiro Lobato, por volta de R$ 1.460 ao mês, segundo o IBGE.
“As redes comunitárias estão aí para atender os moradores que vivem neste limbo”, diz Hiurê Camargo, criador da rede comunitária Portal Sem Porteiras no bairro rural dos Souzas.
Segundo definição da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), redes comunitárias são redes de comunicação de propriedade e gestão coletivas, sem fins lucrativos e orientadas para objetivos comunitários.
Depois de concluir o doutorado em Física no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), em São José dos Campos (SP), Hieurê Camargo se mudou para Monteiro Lobato em 2017. Morador do bairro dos Souzas, sentiu na pele a dificuldade de conexão.
Ele já tinha experiência com redes comunitárias. Encontrou apoio na APC (Associação para o Progresso das Comunicações), rede de organizações da sociedade civil e ativistas fundada em 1990, com sede na África do Sul. O objetivo é capacitar indivíduos, organizações e movimentos sociais para usar tecnologias de informação.
Em parceria com a mexicana Rhizomatica, a APC vem ajudando redes comunitárias na África, Ásia, América Latina e Caribe. No Brasil, a iniciativa já deu suporte na implementação de redes comunitárias como a Portal Sem Porteiras, que recebeu cerca de US$ 15 mil (R$ 74,6 mil) para a sua instalação.
“Mas uma rede comunitária exige recursos para se manter de pé: é preciso fazer a manutenção, trocar equipamento que fica danificado depois de uma chuva forte, por exemplo, pagar o link de acesso à internet… E o mais importante: a rede tem que criar conteúdo próprio, que valorize e fale com a comunidade local”, diz Potyra Aguiar, educadora e representante do PSP no Grupo de Trabalho sobre Redes Comunitárias da Anatel, criado no ano passado.
O objetivo do grupo é entender as necessidades das redes comunitárias espalhadas pelo Brasil, e ainda não quantificadas, e saber como o governo pode apoiar, seja por meio de legislação específica, seja por recursos.
“Uma das ideias discutidas é usar parte dos recursos do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações] para apoiar as redes comunitárias”, diz Nilo Pasquali, superintendente de Planejamento e Regulamentação da Anatel.
O Fust é mantido pelas grandes operadoras de telecomunicações e soma cerca de R$ 1 bilhão, dinheiro previsto para a expansão das redes, segundo Pasquali. “As redes comunitárias exigem poucos recursos, o uso do Fust e de outros fundos, como o FNDE, de educação, está na pauta de discussões”, diz.
Rede aumenta vendas e leva entretenimento a bairro rural
Em Souzas, a manutenção da rede é de responsabilidade de Camargo e de Marcus Lisboa, um pizzaiolo e ajudante de pedreiro que ficou tão entusiasmado com a instalação do Portal Sem Porteiras no bairro que decidiu aprender sobre a tecnologia.
“Foi uma mudança e tanto! Antes a gente dependia de internet discada e, depois, de um pacote pré-pago no celular. Só dava para assistir a uns minutos de filme e acabava a conexão”, diz Lisboa.
Quem quisesse mais tempo online precisava procurar o sinal de celular na rua, na escada da igreja. “Agora consigo assistir a um filme inteirinho deitado na minha cama”, diz.
Já a comerciante Stephany Godói, que tem uma mercearia e padaria com o marido no bairro, passou a aceitar cartão e Pix. Suas vendas aumentaram 50%.
“Muito turista que passava por aqui não tinha dinheiro vivo, todo mundo perguntava de cartão e a gente não tinha como passar”, diz.
“Mesmo o pessoal do bairro queria essa praticidade. Agora eles compram mais.”
A internet também trouxe algumas preocupações. Mãe de três meninas –de 4, 13 e 16 anos–, Stephany agora teme o tipo de conteúdo a que as crianças têm acesso.
“Antes não existia celular. Agora é só celular e a gente tem que ficar em cima, acompanhando o que elas assistem”, diz.
Nascida em Caraguatatuba, litoral paulista, Stephany chegou a Souzas em 2018. Participou de uma radionovela, uma iniciativa do Portal Sem Porteiras para aproximar as moradoras do bairro à tecnologia. Amou a experiência. “O pessoal daqui é muito especial, eles te acolhem”, diz.
Mas o tema da radionovela, violência doméstica, não foi fácil de encarar. O assunto a fez reviver o passado: ela foi abusada pelo próprio pai aos 5 anos de idade, mesma situação vivida pelas duas irmãs mais velhas.
A mãe era alcoólatra. Stephany saiu de casa aos 12 anos e teve a primeira filha aos 17. “Hoje eu consegui superar todo o trauma”, diz. “Mas tem muita maldade no mundo. Se pudesse, criaria minhas filhas em uma bolha.”