Com Rússia coadjuvante, EUA e China travam nova corrida pela Lua
Nesse novo cenário, russos, pioneiros na exploração do espaço, ficaram em segundo plano
SALVADOR NOGUEIRA E TATIANA HARADA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na semana que passou, vimos uma sonda chinesa recolher amostras no lado afastado da Lua -algo que jamais havia sido feito antes. É mais uma demonstração das ambições do país para o futuro de seu programa espacial, que se propõe, embora não de forma declarada, a travar uma nova corrida com os EUA. Nesse novo cenário, os russos, pioneiros na exploração do espaço, tornaram-se meros coadjuvantes.
China e Rússia têm até agora trajetórias muito parecidas em seus programas espaciais, mas enquanto a primeira ascende, a segunda está em franca decadência. O colapso da antiga União Soviética, a partir de 1991, acabou obrigando a Rússia a viver de seu próprio legado. Até hoje as espaçonaves Soyuz, criadas em 1967, são responsáveis pelo envio de cosmonautas à Estação Espacial Internacional (ISS).
Em contraste, a China teve uma ascensão mais tardia, mas constante, atingindo nos últimos anos degraus jamais alcançados antes por soviéticos ou russos -e, em alguns casos, até americanos. Depois de lançarem o primeiro taikonauta ao espaço, em 2003, os chineses avançaram para desenvolver o programa de uma estação espacial similar ao da antiga estação russa Mir. Inaugurada em 2021, a Tiangong faz concorrência à Estação Espacial Internacional (que reúne americanos e russos e da qual os chineses estão proibidos de participar por conta de legislação imposta pelo Congresso dos EUA, que veda cooperação espacial entre os dois países).
Em paralelo, a China expôs suas ambições lunares. Sua missão Chang’e 4, de 2019, foi a primeira da história a pousar no lado afastado da Lua, que não pode ser visto da Terra. E a Chang’e 6, agora em curso, trará cobiçadas rochas daquela região inexplorada do satélite natural até o fim deste mês para análise científica -mais um feito inédito.
Para os próximos anos, as missões Chang’e 7 e 8 devem dar os primeiros passos no estabelecimento da IRLS (sigla em inglês para Estação Internacional de Pesquisa Lunar), iniciativa para criar um consórcio similar ao da Estação Espacial Internacional, mas liderado pelos chineses e concentrado na exploração lunar.
A Chang’e 7, planejada para 2026, descerá na região do polo sul da Lua portando 21 instrumentos científicos, dos quais 6 frutos de parceiros internacionais. Já a Chang’e 8, para 2028, além de realizar estudos, testará técnicas para uso de recursos locais, como por exemplo a criação de tijolos a partir de solo lunar.
São precursoras de futuras missões tripuladas ao satélite, que os chineses pretendem realizar a partir de 2029. A IRLS conta hoje com 11 membros, dos quais dois são fundadores: China (como protagonista) e Rússia (vindo a reboque). Além deles, fazem parte Venezuela, África do Sul, Azerbaijão, Paquistão, Bielorrúsia, Egito, Tailândia, Nicarágua e Sérvia. Fora os russos, ninguém com muita experiência em exploração espacial.
Do lado americano, a campanha é pelos Acordos Artemis, arranjos bilaterais que visam preservar e ampliar a visão determinada pelo Tratado do Espaço, assinado no âmbito da ONU em 1967, que foca a exploração pacífica do espaço e a proibição de que qualquer país declare posse de um corpo celeste.
O objetivo é criar uma regulação internacional capaz de dar segurança jurídica a medidas como o estabelecimento de bases fixas na Lua e em outros corpos celestes, bem como a exploração de recursos naturais. China e Rússia naturalmente declinaram o convite de assinar o acordo, considerando-o uma imposição americana que não abriu margem a negociações.
A iniciativa americana já tem 42 signatários, muitos deles com programas espaciais robustos, como França, Alemanha, Reino Unido, Itália, Canadá, Índia e Japão. O Brasil é um dos participantes.
Se isso lembra os dois blocos da época da primeira corrida espacial, na segunda metade do século passado, não é mera coincidência. De diferente, apenas a troca de liderança, antes Rússia (então URSS), agora China.
No bojo do projeto americano, vêm as missões Artemis, com as quais a Nasa (agência espacial dos EUA) espera retornar à Lua com astronautas ne sta década, desta vez para ficar. A Artemis 1, em 2022, voou ao redor da Lua sem tripulação. A Artemis 2, em 2025, fará o mesmo com astronautas (pela primeira vez com um tripulante não americano, um canadense, numa viagem lunar). E a Artemis 3 ambiciona realizar, em 2026 (ou possivelmente depois, tende a atrasar), a primeira alunissagem tripulada do século 21, como prelúdio da criação de uma base americana (com parceiros internacionais) na região do polo sul lunar. A ILRS também será instalada lá.
A obsessão tem a ver com a presença de água, sobretudo em crateras do polo sul, recurso essencial a uma futura base tripulada. Vai ter briga?
Dificilmente. Tem espaço para todo mundo, a Lua é bem grande, mas é inegável a sensação de uma corrida. Por ora, os americanos ainda despontam como favoritos. Mas, no começo dos anos 2000, eles diziam que voltariam à Lua em 2018. Depois 2020. Depois 2024. Agora 2026. Quer apostar que vai atrasar de novo?
Em contrapartida, os chineses, desde os anos 2000, dizem que a meta é realizar sua primeira missão tripulada à Lua ao redor de 2030. A predição segue válida. Parece um pouco a corrida da lebre contra a tartaruga. Quem vai cruzar a linha de chegada primeiro? Os próximos anos dirão.