Por que o queernejo, a promessa de um sertanejo gay, nunca chegou a decolar

Levar diversidade ao sertanejo, porém, não tem sido fácil

Folhapress Folhapress -
Por que o queernejo, a promessa de um sertanejo gay, nunca chegou a decolar
(Foto: Divulgação)

Pedro Martins, de SP – Na adolescência, contam eles, tudo o que queriam era distância do sertanejo. Buscaram refúgio do gênero, considerado heteronormativo demais, no pop de divas como Lady Gaga, que dizia não haver nada de errado em amar quem quer que seja, “pois você nasceu assim” e “Deus não comete erros”.

Essa foi a jornada de cantores como Gabeu e Alice Marcone -ele, um homem gay, e ela, uma mulher trans. Com outros sete artistas, eles criaram o queernejo, inspirados pelo termo em inglês usado para definir quem não se encaixa em papéis de gênero e sexualidade impostos no nascimento.

O grupo busca se apropriar das modas de viola que ouviam na infância, reaproveitando harmonias, melodias e ritmos, ao mesmo tempo em que agregam sonoridades pop e “expressam viadagem”, nas palavras de Marcone.

Levar diversidade ao sertanejo, porém, não tem sido fácil. O movimento começou em 2019 com Gabeu, de 23 anos, que é filho de Solimões, da dupla com Rionegro. Em seu primeiro single, ao cantar sobre um casal gay que vive às escondidas na roça, ele conquistou meio milhão de acesso s no YouTube em menos de um mês, número que se repetiu nos streamings de música.

O segundo single, sobre um casal em que um homem mais velho banca o mais novo, arrefeceu. Em audiência, “Sugar Daddy” alcançou 675 mil plays, metade do que acumula “Amor Rural”. No Spotify, a conta é parecida, com queda de 455 mil para 219 mil reproduções.

A popularidade dos dois singles de Marcone flutuou menos. Os números, porém, são mais baixos do que os de Gabeu, o que também é uma realidade para os outros artistas da vertente, com faixas que, no Spotify, vão de poucas centenas a no máximo 40 mil streams.

Embora tenha surgido de forma promissora, o movimento estacionou. Falta investimento, avalia Marcone, de 26 anos, que se formou psicóloga na Universidade de São Paulo antes de enveredar pelas artes. Ela também escreve seriados para Netflix, Amazon Prime e HBO, além de ter produzido a trilha de “Toda Forma de Amor”, do Canal Brasil.

“De onde vem o dinheiro dos sertanejos? De marcas de cerveja, de carne, interessadas em sustentar o sertanejo tal qual ele é. Tem marcas dispostas em investir num discurso afrontoso, mas que não querem se aproximar do sertanejo, por ser historicamente hétero”, diz.

A avaliação de Marcone ecoa na do sociólogo Wellthon Leal, que estudou, na Universidade Federal de Pernambuco, a construção da identidade gay a partir do consumo de Beyoncé e Britney Spears. Ele diz ser difícil separar o sertanejo da heteronormatividade, motivo pelo qual não só marcas mas os próprios LGBTs podem ter resistência ao queernejo.

“As grandes figuras do gênero, como Gusttavo Lima, são próximas do bolsonarismo, o que afasta o sertanejo dos LGBTs, que valorizam uma cultura cosmopolita, onde eles encontram liberdade até para performar sua sexualidade”, afirma.

Há ainda quem acuse o grupo de arruinar o sertanejo. “Tem quem acha tudo que estamos fazendo um grande absurdo, uma afronta”, diz Gabeu, ao se lembrar de comentários preconceituosos nas redes sociais. “No começo, eu ficava inseguro, mas depois comecei a me divertir lendo.”

Na busca por popularidade, o grupo fechou uma parceria com a chinesa ByteDance, dona do TikTok e do streaming de música Resso, para a produção de um documentário de três minutos sobre o queernejo.

O curta estreia no perfil do Resso no TikTok em 28 de junho, Dia do Orgulho LGBT. Além de Gabeu e Marcone, participarão Gali Galó, Reddy Allor, Sabrina Angel, Zerzil, Mel & Kaleb e Bemti, que se estabeleceu no indie pop, mas adotou uma viola caipira e hoje também canta sertanejo.

Gabeu e Marcone também aguardam o fim da pandemia para voltar à ativa. A crise os obrigou a adaptar o Fivela Fest, o primeiro festival de queernejo, para uma live no YouTube. Também os impediu de criar novas canções, já que o produtor deles vive no interior, e a dupla não se sentia confortável para viajar.

Marcone faz planos para o seu primeiro álbum, mas ainda não sabe quando vai poder gravar. Gabeu, por outro lado, conseguiu finalizar recentemente o seu, a ser lançado ainda neste ano. As dez faixas do disco vão do brega ao arrasta-pé, e as letras, do cômico ao drama de uma carta a pais de LGBTs.

“As faixas são muito diferentes. Tem uma country que poderia ser trilha de um faroeste do Clint Eastwood, outra que é uma serenata”, adianta. “Os eus-líricos também são diferentes. Minhas músicas não serão todas sobre o relacionamento de dois homens.”

Personalidades poéticas que transitam entre gêneros e sexualidades distintas podem atrair outros públicos, na avaliação dos cantores. Por ser uma trans heterossexual, Marcone, por exemplo, canta romances entre homem e mulher. Apesar dos versos sobre “uma donzela pistoleira”, ninguém diria, ao ouvir no rádio, que seu single mais recente é protagonizado por uma trans.

“Se assistir ao clipe, verá que é sobre uma mulher com pau, mas isso está disfarçado e mergulhado em poesia. Sou uma mulher e me relaciono com homens. Isso gera uma letra que me aproxima do feminejo”, diz, evocando a cena do sertanejo que trata do empoderamento feminino. “Minha identidade de gênero vem mais na imagem do que nas letras.”

“Não posso fingir ser outra coisa para me encaixar nos padrões heteronormativos do mercado. Se tentasse, ficaria ridículo”, acrescenta Gabeu. “Mas o queernejo não são só eus-líricos LGBTs. Não quero cantar para sempre sobre ser gay. É uma característica importante da minha vida, que quero abordar, mas não sempre.”

A experimentação não se restringe às letras. Enquanto Gabeu aposta no sertanejo raiz inspirado pelo pai, Marcone agrega a sofrência de Marília Mendonça e o romantismo de Luan Santana, com a bachata pasteurizada no Brasil por Gusttavo Lima e outras sonoridades pop.

“Estes ritmos mais contemporâneos do sertanejo me permitem trazer referências do pop, que também fez parte da minha vida”, diz Marcone. “O que define o queernejo são artistas LGBTs se aproximando do sertanejo, mas temos histórias diferentes e estilos próprios. Estamos experimentando.”

Conheça os artistas do queernejo:

– Gabeu deu início em 2019 ao pocnejo -termo cunhado na internet, do qual ele se apropriou, mas logo trocou por queernejo, por ser mais inclusivo

– Psicóloga, Alice Marcone se enveredou pelas artes. Leva representatividade trans ao sertanejo em letras próximas do feminejo

– Bemti se estabeleceu no indie-pop, mas adotou uma viola caipira e hoje também canta sertanejo

– Gali Galó se apropria de xingamentos como “caminhoneira” para cantar sobre a vivência lésbica e não-binária

– Zerzil vai do bregafunk nordestino à bachata caribenha ao cantar sobre relacionamentos gays

– Drag queen, Reddy Allor usa a viola para dar vazão à sofrência, com letras que tratam de temas que vão de indecisões a abusos em relacionamentos

– Primeira dupla do movimento, Mel & Kaleb, canta sobre superação e novos amores, misturando o sertanejo de raiz com o universitário

– A drag queen Sabrina Angel leva batidas do funk e da bachata ao sertanejo, além de fazer covers de hits como “Rajadão”, de Pabllo Vittar

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