Taleban amplia repressão e manifestantes morrem em dia de protesto

Grupo extremista islâmico retomou o poder no domingo (15)

Folhapress Folhapress -
Taleban amplia repressão e manifestantes morrem em dia de protesto
(Foto: CNN International)

Igor Gielow, de SP – Em mais um dia em que suas promessas de moderação foram colocadas à prova, o Taleban reprimiu diversos protestos no leste do Afeganistão e em Cabul, provocando diversas mortes.

O grupo extremista islâmico retomou o poder no domingo (15), após conquistar a capital 20 anos depois de ser enxotado pelas forças ocidentais lideradas pelos Estados Unidos, que o puniram por ter protegido os terroristas que executaram o 11 de Setembro.

Desde então, os fundamentalistas têm dado repetidas entrevistas e declarações afirmando que não repetiriam seu governo anterior, de 1996 a 2001, no qual implantaram um simulacro de califado islâmico medieval, onde não havia direitos humanos e a brutalidade imperava.

Na quarta (18), ao menos três pessoas já haviam sido mortas ao protestar contra o Taleban na cidade de Jalalabad, 150 km a leste de Cabul.

Já nesta quinta, centenas de manifestantes foram às ruas em Cabul e outras cidades para celebrar o tradicional Dia da Independência, no caso o fim do jugo britânico em 1919. Levando o pavilhão nacional afegão, elas gritavam “Nossa bandeira, nossa identidade” e o usual “Alá é o maior” nas ruas.

Os relatos são confusos até aqui, mas nos atos ocorridos ganharam ar de protesto contra os novos donos do poder, que reagiram do jeito que sabem: atirando. Em Asadabad (Kunar, leste afegão), testemunhas disseram à agência de notícia Reuters que houve um pequeno massacre.

“Centenas foram para as ruas. No começo eu estava com medo e não queria ir, mas quando eu vi meus vizinhos se juntando ao ato, peguei uma bandeira que tinha em casa e fui. Várias pessoas morreram e ficaram feridas no corre-corre e pelos tiros do Taleban”, disse Mohammed Salim.

Houve confusão também em Jalalabad e Khost, outra cidade importante a leste, e em Cabul, mas sem informações sobre vítimas. O Taleban, procurado por agências de notícias, não se pronunciou.

Mesmo que haja exageros, dada a dificuldade de aferição da realidade pela imprensa local e pelos cada vez mais raros jornalistas ocidentais no Afeganistão, uma coisa é certa: o Taleban terá de lidar com mais resistência popular do que na sua encarnação passada.

Em 1996, o grupo vencera uma guerra civil amarga, iniciada em 1992, após os turbulentos anos de governo dos guerrilheiros islâmicos que haviam emergido vitoriosos da ocupação soviética de 1979 a 1989.

O país era um amontoado de ruínas, sem infraestrutura, e não havia a comunicação instantânea de hoje. Por todas suas falhas conceituais, os 20 anos de presença ocidental melhoraram um pouco as condições de vida e, principalmente, a liberdade e interconectividade dos afegãos.

Se isso irá se estruturar em uma oposição real ao grupo, é outra história. Nesta quinta, o chanceler russo, Serguei Lavrov, afirmou que há um bolsão de resistência sendo organizado no mítico vale do Panjshir, uma cênica região montanhosa 100 km a noroeste de Cabul.

“O Taleban ainda não controla todo o Afeganistão”, disse Lavrov, cujo país tem feito uma abertura cuidadosa nos contatos com os fundamentalistas, diferentemente da China, que deu apoio mais explícito aos radicais.

Segundo ele, a resistência é liderada por um dos vice-presidentes do regime derrubado, Amrullah Saleh, e Ahmad Massoud, o filho do “leão de Panjshir”, o maior heroi nacional daqueles que lutaram contra o Taleban nos anos 1990, Ahmad Shah Massoud.

Saleh, que se diz o presidente interino de fato do país, postou no Twitter palavras de apoio aos manifestantes, pedindo que levassem bandeiras afegãs para as ruas.

O problema para ele é semelhante ao que afligiu o pai de Massoud, que foi morto numa ação cinematográfica, na qual terroristas se fingiram de repórteres e explodiram tudo com a câmera-bomba numa entrevista dois dias antes do 11 de setembro de 2001.

Panjshir nunca caiu para o Taleban, sendo a base da Aliança do Norte, grupo que misturava tribos de etnias minoritárias, como tadjiques e uzbeques, em oposição à base majoritária dos fundamentalistas, os pashtuns (40% dos 37 milhões de afegãos).

Ao longo dos anos talebans, cerca de 10% do território ficou com esses opositores, mas o governo foi tocado a partir de Cabul. Na realidade, se não fosse o 11 de Setembro, eles provavelmente teriam sido eliminados pelo Taleban.

Além disso, como egresso do governo do presidente que fugiu, a liderança de Saleh é questionável. Nesse sentido, é mais importante descobrir qual será o movimento de senhores da guerra poderosos como Abdul Rashid Dostum, um uzbeque étnico que comandava as defesas de Cabul e sumiu no dia da chegada do Taleban.

Enquanto isso, os talebans vão montando seu governo, a partir de consultas com líderes como o ex-presidente Hamid Karzai e o ex-chanceler Abdullah Abdullah, na quarta. Até Ghani, exilado em Abu Dhabi, se disse interessado em voltar.

O Ocidente se faz de desentendido e, com o desengajamento dos EUA e a posição europeia de considerar os talebans no poder um fato consumado, o caminho parece aberto ao grupo. “É o acontecimento geopolítico mais importante desde a anexação da Crimeia [pela Rússia] em 2014”, disse o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, dizendo que era peciso negociar com os fundamentalistas.

Declarada a volta do Emirado Islâmico do Afeganistão e a reintrodução da sharia, a lei islâmica, resta agora saber como isso se dará na prática. Moderação e sharia não andam juntas: a leitura estrita do texto legal muçulmano feita pelo Taleban levou às barbaridades cometidas contra opositores, minorias e, mais famosamente, mulheres.

Ainda que porta-vozes como Zabihullah Mujahid tenham dito que haverá liberdade feminina no país, o aposto “de acordo com os limites da sharia” repetido por ele e outros, gera justificada desconfiança.

E há a crise contínua no aeroporto de Cabul, palco de ao menos 12 mortes desde domingo -inclusive o símbolo do fracasso da retirada americana decretada pelo presidente Joe Biden em abril, os afegãos que se agarraram a cargueiros decolando e morreram ao cair do céu.

A saída das forças, que acaba dia 31 mas pode se estender até o fim das evacuações, foi o gatilho para a ofensiva taleban, que em duas semanas tomou conta de todo o país. Biden lavou as mãos e defendeu sua decisão, que de resto ratificou um acordo entre EUA e Taleban feito pelo antecessor, Donald Trump.

Nesta quinta, o Taleban cercou o aeroporto e impediram o acesso de civis afegãos sem passaporte e visto no local. As forças americanas, que protegem a embaixada transferida para a área e organizam a evacuação, se queixaram -embora, na véspera, a Otan (aliança militar ocidental) tenha determinado a mesma restrição.

Resultado, há filas e cenas de campos de refugiado em plena capital. Embaixadas ocidentais reportaram ter retirado cerca 8 mil pessoas em voos militares desde o domingo, mas a situação segue incerta.

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