Morre José Eduardo dos Santos, presidente que construiu a Angola independente
Ele faleceu nesta em Barcelona, onde estava internado desde 23 de junho após sofrer um acidente vascular cerebral
FÁBIO ZANINI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pouco dias antes de deixar a Presidência de Angola, em setembro de 2017, José Eduardo dos Santos inaugurou, como um de seus últimos atos oficiais, um monumento em Cuito Cuanavale, no leste do país.
A estrutura homenageia heróis de uma das mais famosas batalhas da guerra civil, em 1988. Épico, o confronto que colocou frente a frente marxistas no governo e anticomunistas com apoio do apartheid sul-africano terminou sem vencedor claro e se tornou espécie de mito fundador da Angola independente.
Ao associar-se a evento tão simbólico, o presidente que deixava o cargo após impressionantes 38 anos no poder buscava lustrar suas credenciais de pai da nação, como último ato antes da aposentadoria forçada.
Dos Santos morreu nesta sexta-feira (8), aos 79 anos, em Barcelona, onde estava internado desde 23 de junho após sofrer um acidente vascular cerebral. Ele se tratava de uma doença na cidade espanhola havia vários anos
Dos Santos nunca teve a personalidade como trunfo, o que faz dele uma exceção entre os longevos líderes africanos do período pós-descolonização africana. Neste aspecto, jamais esteve na mesma liga de Robert Mugabe (Zimbábue), Julius Nyerere (Tanzânia) ou Kwame Nkrumah (Gana), para não falar de Nelson Mandela (África do Sul), capazes de hipnotizar multidões com sua oratória.
A voz fina, os trejeitos de engenheiro –sua formação acadêmica e como gostava de ser chamado– e o estilo de burocrata soviético eram a antítese do carisma. Pelas costas, opositores ridicularizavam-no com a alcunha “Zédu”. Foram essas características, de um certo modo, que o catapultaram ao comando do país em 1979, após a morte repentina do primeiro presidente angolano, Agostinho Neto.
Naquele momento, Dos Santos era rara figura de consenso, que não ameaçava nenhuma facção interna do dominante MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Era visto como um líder de transição, mas sua habilidade em se equilibrar no mosaico étnico, regional e ideológico do país o manteve no poder por quatro décadas, uma façanha mesmo num continente acostumado a longos reinados políticos.
Como presidente, “o engenheiro” administrou e pilhou os recursos do Estado construindo uma vasta rede clientelista que sufocou opositores e rivais. A longa guerra civil, resolvida apenas em 2002, de uma certa forma o ajudou, estreitando a margem para contestações dentro do regime em nome do esforço contra o inimigo liderado pela Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola).
Seu regime nunca foi particularmente sanguinário, ao menos se comparado ao que se viu em outras nações africanas, apesar das purgas eventuais e da repressão a manifestações de dissenso.
Dos Santos governou mais como um gerente da riqueza natural proporcionada pelo petróleo e pelos diamantes. Seu modus operandi era cooptar instituições e soltar o freio na compra de apoio das elites, o que fez de Angola por muito tempo um dos países mais corruptos do mundo. Na primeira década deste século, o boom do petróleo fez de Angola o país que mais crescia no planeta, com taxas anuais superiores a 20%. A posição do então presidente nunca pareceu mais segura. Grandes obras, muitas das quais tocadas por empreiteiras brasileiras, viraram uma marca do país, movidas a propina e superfaturamento.
Mas o crash global que se seguiu dez anos depois teve efeito contrário, trazendo recessão, crise cambial, pobreza e até o nascimento de um pequeno movimento de contestação da sociedade civil.
A fórmula mágica que permitiu ao engenheiro tamanha longevidade aos poucos esvaiu-se, e as qualidades que o levaram ao poder acabaram se tornando um peso para o regime. Acusações de corrupção envolvendo sua própria família avolumaram-se, contribuindo para sua decisão de finalmente sair de cena.
A promessa de que o novo chefe de Estado, João Lourenço, preservaria os privilégios do clã presidencial não se concretizou, apesar de nominalmente serem aliados. Com instinto de sobrevivência, Lourenço distanciou-se do antigo estadista e deixou correr solta uma espécie de Lava Jato angolana.
A decadência física culminou na morte do ex-presidente menos de dois meses antes de uma eleição em que seu legado poderia ser um embaraço para o atual governo, criticado pela crise econômica. De certa forma, foi um último serviço prestado por Dos Santos ao partido que ele comandou durante tanto tempo.
Resta agora a dúvida sobre como a população cultivará a memória do homem que mais contribuiu para a criação da Angola moderna e se a imagem de pai da pátria finalmente colará nele.