Mulheres lideram movimento ‘Ela, não’ na Itália contra eleição de Giorgia Meloni
"Há muita diferença entre liderança feminina e liderança feminista", repetiu a cantora Levante
MICHELE OLIVEIRA
MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – “Seu programa me dá medo”, disse a cantora Elodie. “Há muita diferença entre liderança feminina e liderança feminista”, repetiu a também cantora Levante, parafraseando a líder da centro-esquerda Elly Schlein. “É nossa hora de agir”, tuitou Chiara Ferragni, mais famosa influencer do país.
Nas últimas semanas, mulheres famosas na Itália, especialmente da área da música, encampam individualmente uma campanha do tipo “Ela, não” contra a possibilidade de que Giorgia Meloni, líder do partido de ultradireita Irmãos da Itália, se torne a primeira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra, rompendo uma tradição masculina de 76 anos.
Ao que indica a pesquisa Ipsos da última quinta (1º), a coligação de direita formada pelo partido de Meloni, pela Liga de Matteo Salvini e pela Força, Itália de Silvio Berlusconi manteve o primeiro lugar, com 46,4% das intenções de voto, mais de 15 pontos percentuais à frente da chapa de centro-esquerda. Como o Irmãos da Itália é o mais bem colocado, com 24%, em teoria o lugar de chefe de governo seria ocupado pela legenda, segundo acordo entre os líderes.
Num país com a maior disparidade da União Europeia entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com só metade delas, entre 20 e 64 anos, ativas economicamente, era de se esperar que a chegada de uma mulher a um dos postos mais altos da vida pública fosse celebrada pela representatividade. Mas para uma parte delas a possível conquista de Meloni tem mais sabor de derrota.
Não só por ela ser um dos maiores expoentes da ultradireita europeia, fundadora de um partido que carrega símbolos diretamente ligados ao pós-fascismo. Mas também porque seu programa é considerado distante da agenda histórica do movimento feminista.
Divulgado nesta semana, o plano tem como primeiro tópico o “apoio ao nascimento e à família”, definida como o “elemento-base da sociedade”. Entre as propostas, aumento do auxílio mensal para famílias com filhos pequenos, redução de impostos de fraldas e mais vagas nas creches gratuitas.
“A agenda acaba por apoiar a mulher no papel de mãe. Do ponto de vista da igualdade de gênero e de modelos de famílias, não tem nada a ver com o movimento histórico das mulheres”, diz à reportagem Giorgia Serughetti, pesquisadora de teoria política e gênero na Universidade de Milão-Bicocca.
Para a analista, ao reproduzir slogans como “Deus, pátria e família” e se definir como “mulher, mãe, italiana e cristã”, Meloni busca reforçar que o modelo de família é um só, heteronormativo, excluindo o reconhecimento de direitos a núcleos LGBTQIA+. Ao mesmo tempo, ao dar ênfase ao caráter patriótico em medidas como o bloqueio naval contra imigrantes, subtrai da lista estrangeiras e não cristãs.
Uma das maiores preocupações dos grupos feministas se relaciona com o acesso ao aborto, descriminalizado desde 1978 e, em teoria, acessível na rede pública. No papel, Meloni defende a “plena aplicação” da lei que consente com a interrupção voluntária da gravidez, mas enfatiza a prevenção. Segundo especialistas, na prática, isso significa incentivar, inclusive financeiramente, organizações chamadas de “pró-vida”, que atuam na tentativa de dissuadir mulheres da decisão de abortar.
A região de Marche, governada pelo Irmãos de Itália, está entre aquelas em que as mulheres enfrentam mais dificuldades de acesso para a interrupção da gravidez, com obstáculos ao aborto farmacológico e alto percentual de médicos que podem se recusar a realizar o procedimento por motivos pessoais ligados a religião, moral ou ética. Foi a partir desse tema que Chiara Ferragni se manifestou nas redes: “É uma política que pode se tornar nacional” se a direita vencer.
“As iniciativas que na prática podem ter como resultado o esvaziamento da lei do aborto são o ponto mais preocupante da cultura política do partido. Ainda mais diante do revés notável que o tema enfrenta mundialmente”, diz Serughetti.
Em seu livro autobiográfico e em declarações anteriores à campanha, Meloni procurou minimizar o ponto de vista feminino de suas conquistas, como o fato de ser uma das poucas mulheres a liderar um partido no país. Nas últimas semanas, passou a dar mais ênfase ao simbolismo de poder se tornar a primeira mulher primeira-ministra da Itália, ainda que ressaltando o viés da maternidade. “Não vou renunciar a nada que tenha relação com a minha filha de seis anos. As mulheres dão sempre um jeito.”
A intenção, segundo analistas, é melhorar seu desempenho entre essa fatia do eleitorado, segmento em que o Irmãos da Itália se sai pior que os adversários. Enquanto mulheres são maioria (51,8%) do total de eleitores, figuram como minoria (46%) entre apoiadores do partido. “Ela passou a jogar essa carta de ser mulher, mas não pede um voto de gênero, mas sim a favor de um modelo de família que talvez agrade mais aos homens que às mulheres”, avalia Serughetti.
REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NA ITÁLIA
51,3% da população
51,8% dos eleitores
35,7% dos deputados
34,4% dos senadores
Fontes: Banco Mundial e União Interparlamentar