Levar filho para bloqueio pode causar até perda da guarda, dizem especialistas
De acordo com profissionais, atitude pode representar um risco efetivo na criação dos menores
WILLIAM CARDOSO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As manifestações golpistas que têm bloqueado estradas por todo o país contam com a presença de crianças ao lado de pais ou responsáveis. Segundo especialistas em infância e juventude, bem como direito de família, expor os filhos a esse tipo de situação, onde há risco de violência, pode levar à perda do poder familiar, em casos extremos, e servir até mesmo como argumento em disputa da guarda.
Ex-coordenadora do Núcleo Especializado da Infância e Juventude e diretora assistente da Escola da Defensoria Pública de São Paulo, Leila Rocha Sponton afirma que existe um risco efetivo e iminente ao expor as crianças durante esses protestos, que exige inclusive a atuação do conselho tutelar e até mesmo do Ministério Público.
“É colocar as crianças em risco, de forma deliberada, dolosa, numa situação em que é sabido que o confronto é possível e provável. Ainda mais depois de uma decisão judicial em que o ministro do STF informa que as forças policiais deverão agir dentro do necessário para conter. Fica ainda mais claro”, explica Leila.
A defensora cita os artigos 227 da Constituição, que aponta o dever de todos de garantir, entre outros, que crianças sejam privadas de violência, e o 132 do Código Penal, sobre pôr em risco a vida ou saúde de outra pessoa, como embasamentos legais que podem ser utilizados contra pais ou responsáveis que expõem as crianças em bloqueios golpistas nas rodovias.
Segundo Leila, os pais, a família e todos ao redor têm o dever de proteger as crianças. Quando isso não acontece, o Estado tem a obrigação de agir. A defensora explica que são raríssimas as situações em que o conselho tutelar pode tirar uma criança dos pais ou responsáveis, mas que isso é possível quando há risco risco efetivo e iminente à saúde, à integridade ou à vida, como no caso das manifestações antidemocráticas.
A representante da Defensoria Pública diz que, fora descumprir frontalmente os deveres do poder familiar, pais ou responsáveis que levam essas crianças para a beira da estrada também falham em outros aspectos. “É para além de uma questão jurídica, com consequência a, b ou c. A gente está vendo uma degradação moral aí. Por conta de algo abstrato, um descontentamento, você coloca em risco o que é seu dever, que é cuidar do seu próprio filho”, diz.
A defensora pública questiona também o exemplo de cidadania que é dado às crianças com esse tipo de atitude golpista. “Que tipo de sociedade estamos criando, em que as pessoas não se importam nem com os próprios filhos a fim de fazer valer, à força, sua vontade que, democraticamente, não foi a conquistada?”
Leila também aponta a contradição no discurso de parte daqueles que estão à beira das estradas. “Muitas dessas pessoas que estão fazendo isso agora são as mesmas que, quando há uma reintegração de posse e as famílias estão saindo, dizem ‘nossa, estão usando as crianças como escudo’. E olha que são pessoas que estão saindo de uma casa, não teriam nem como esconder a criança”, explica.
Advogado especialista em direito de família e sucessões e mestre em direito pela PUC-SP, Lucas Marshall Santos Amaral também afirma que é dever constitucional da família, do Estado e da sociedade zelar pela garantia e efetividade dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, sem expô-los a qualquer tipo de negligência.
“Sendo assim, embora o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] garanta a participação dos menores de 18 anos na vida política, como forma do exercício de suas liberdades, isso não é ilimitado”, diz. “Se for verificada qualquer exposição negativa a tais indivíduos, como às suas vidas, saúde, ou demais direitos básicos, o Estado poderá intervir”, explica.
Segundo Amaral, a própria polícia poderá agir se for verificado algum ilícito criminal ou civil. “Mas, nesse caso, o Ministério Público é quem deveria agir diretamente na fiscalização dos direitos das crianças e do adolescentes, na sua função de fiscal da lei”, diz.
Levar uma criança a uma manifestação golpista de beira de estrada, colocando-a em risco, pode até servir como argumento da outra parte em uma disputa sobre a guarda, por exemplo. “Mas isso não é sinônimo de vitória judicial.
Apenas será um elemento a ser apurado dentro de todo um contexto sobre a vida daquela família, no que se refere à atribuição da guarda”, afirma Amaral.