Brasil pode ver calor arrefecer em 2024, mas ano ainda deve ser um dos mais quentes da história
População deve chegar ao fim de março sentindo um verão com temperaturas maiores do que nos últimos dois anos
LUCAS LACERDA
A combinação de oceanos e planeta mais quentes com os efeitos do El Niño pode causar ondas de calor e possíveis recordes de temperatura neste verão. É nessa toada que seguirá o clima no primeiro de 2024 no Brasil, cada vez mais sujeito a efeitos da mudança climática.
Mesmo sem dados oficiais sobre o ano passado, cientistas já esperam que 2023, com seguidos eventos extremos no país, tenha sido o ano mais quente já registrado na história da Terra.
Embora as análises meteorológicas não tenham alcance para além do primeiro semestre, a chance de um arrefecimento do El Niño, caracterizado pelo aquecimento acima da média das águas do oceano Pacífico equatorial, poderia ajudar numa trégua.
Ainda assim, a expectativa é que 2024 fique entre os anos mais quentes já registrados, por causa do aquecimento do planeta. Já as chuvas mal distribuídas no espaço e no tempo, como visto no começo do ano em São Sebastião, no litoral paulista, e no Sul do país até os últimos dias do ano, são um exemplo do que pode se tornar a marca dos temporais no Brasil.
Além disso, essa nova configuração de chuvas favorece a formação de zonas de alta pressão atmosférica sem umidade, ambiente propício para as ondas de calor. Segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), elas são caracterizadas por registros de temperatura 5°C acima da média por um período de três a cinco dias.
Para o climatologista Francisco Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mesmo uma situação neutra, sem El Niño, ou a eventual configuração do La Niña, que tem o efeito contrário, não deve ser motivo de tranquilidade.
Isso porque dados da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (Noaa, na sigla em inglês) dos Estados Unidos citados por ele mostram que as anomalias de temperatura ainda subiam até novembro, acima de todos os dez anos mais quentes já registrados, que geralmente já mostravam queda a partir de setembro.
As anomalias são desvios de temperatura em relação à média do século 20. Para cada mês, é considerado o desvio acumulado. Assim, para um determinado ano, a anomalia de março leva em conta o desvio acumulado de janeiro a março.
“Se entrássemos numa neutralidade ou num La Niña, 2024 não seria o ano mais quente da história, mas seria o segundo ou o terceiro. Continuamos no pior cenário”, diz Aquino, que ainda avalia ser cedo para dizer que o ano não será mais quente do que 2023.
Segundo o CPC (Climate Prediction Center), do governo dos Estados Unidos, há 60% de chance de o El Niño arrefecer entre abril e junho de 2024.
Já as chuvas começam o ano abaixo da média na maior parte dos estados do Nordeste, além do Tocantins e da maior porção do Pará e do extremo leste do Amazonas, segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia). As previsões de variações positivas ou negativas em relação à média para mais ou menos do que a média vão até fevereiro.
Chove acima da média em Roraima e em parte do Acre. No Sudeste, a chuva fica acima da média na parte sul de Minas Gerais. Já no Sul do país, ainda por efeitos do El Niño, cujo ápice termina em janeiro, chove acima da média até fevereiro. Já em São Paulo e Rio de Janeiro, a chuva deve ficar dentro do previsto.
A chuva é guiada por sistemas meteorológicos como a Zona de Convergência do Atlântico Sul, que vem do oeste do Amazonas e se posiciona sobre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, segundo Andrea Ramos, meteorologista do Inmet.
No Nordeste, a chuva tem influência da zona de convergência intertropical e promove chuvas na parte Norte e Nordeste do país, além de sistemas frontais vindo da região Sul. “Como o El Niño provoca mudanças nesse regime, vemos que as chuvas devem ficar abaixo da média, principalmente no Nordeste.”
Mas a população deve chegar ao fim de março sentindo um verão mais quente do que nos últimos dois anos, segundo o meteorologista Vinícius Lucyrio, da Climatempo. “Serão vários dias a fio com temperaturas altas, apesar de ser uma estação com propensão menor à ocorrência de ondas de calor.”
Um dos riscos de desastres ainda na estação chuvosa em São Paulo, segundo Lucyrio, é a ocorrência de chuvas no final da tarde. “Verões com El Niño tendem a ter mais esse tipo de chuva, que causa alagamentos, principalmente na Grande São Paulo.
O alerta reflete o potencial maior de ocorrências extremas por causa da crise climática, o que exige preparação das cidades para uma cultura de prevenção.
“Na região Sul, sabemos, chove mais durante anos de El Niño. É preciso redobrar cuidado, mas sempre teremos desastres. O Sudeste é a pior região de todas, porque é onde vive mais gente e é onde temos o maior número de áreas de risco”, diz o meteorologista Marcelo Seluchi, do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).
Para ele, a preparação não deve ficar ligada a previsões de chuva acima ou abaixo da média, especialmente no Sudeste, que apresenta variações. A única certeza, afirma, é que “sempre temos desastres”.
Eventos do ano passado justificam a preocupação de Seluchi. Segundo a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, ao menos 14,5 milhões de pessoas foram afetadas por desastres climáticos em 2023 no Brasil, com mais da metade dos municípios –2.797 dos 5.568– tendo decretado situação de emergência ou estado de calamidade. Os repasses aos municípios por causa dos desastres climáticos chegaram a R$ 1,4 bilhão.
Em fevereiro do ano passado, chuvas deixaram ao menos 65 mortos em cidades do litoral norte de SP, a maior parte em São Sebastião. Naquele mês, foram registradas seis vítimas no Rio de Janeiro.
Dois meses depois, em abril, seis pessoas morreram e 36 mil famílias foram afetadas por inundações no Maranhão. Em julho, 25 mil foram desalojados por chuvas em Alagoas, com rios e lagoas transbordando em diversas cidades. Bahia e Pernambuco também tiveram milhares afetados pela chuva. Uma pessoa morreu em fevereiro em deslizamentos de terra em Olinda, na região metropolitana do Recife.
Em junho, chuvas causadas por um ciclone deixaram 49 mortos, a maioria no Rio Grande do Sul, meses depois de uma seca que atingiu o estado. No mês seguinte, o terceiro fenômeno a atingir a região em 30 dias deixou três mortos e 1 milhão sem energia elétrica no Sul e em parte do estado de São Paulo.
A região continuou a ser castigada em novembro, com mortes em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, em tempestades que ocorreram após uma forte onda de calor. Em dezembro, 50 mil gaúchos tiveram o serviço de energia elétrica afetado por novos temporais.
No Norte, 21 mil acreanos precisaram deixar suas casas por causa de enchentes no fim de março. No período de estiagem, o extremo se inverteu. A seca histórica na região fez rios desaparecerem, atingindo cerca de 100 cidades. Em outubro, 45 casas foram arrastadas para dentro do rio em Vila Arumã, no Amazonas, por causa da erosão do solo.
Em dezembro, 300 ficaram desabrigados e dois morreram em Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro.