Conheça o movimento ‘antitrampo’, que pressiona pelo fim da escala 6×1
Comunidade diz não ter ideologia política, mas pender para a esquerda
THIAGO BOMFIM
Em meio a discussões sobre redução da jornada de trabalho, fóruns na internet que defendem uma transformação na maneira em como pensamos a relação com o trabalho têm ganhado participantes. O UOL conversou com os moderadores do fórum do Reddit r/antitrampo, maior comunidade brasileira sobre o assunto.
O QUE É O MOVIMENTO ‘ANTITRABALHO’?
“Queremos acabar com o regime do trabalho assalariado”. Organizadores do fórum r/antitrampo buscam um sistema em que “não seja possivel obrigar alguém a fazer o que não quer sob ameaça de não conseguir ter suas condições de sobrevivência”. Nem todos os moderadores pensam igual, mas todos concordam com uma mudança radical nas relações de trabalho.
Fórum tem 125 mil membros e se opõe à escala 6×1. O espaço surgiu em inspirado na versão em inglês, o r/antiwork, que tem 2,8 milhões de membros e propõe ser “um lugar seguro para reclamar do patrão”. Os moderadores buscam “organizar a insatisfação dos trabalhadores para buscar melhores condições de vida”, através da criação de “um ambiente seguro para o trabalhador desabafar sobre os dissabores do mundo do trabalho”.
“Buscamos uma sociedade onde o indivíduo possa produzir, sem ser nessa lógica de “trabalho” compreendida pela sociedade atual, com relações de subserviência; má distribuição de resultados da produtividade; produção totalmente desvinculada de seu potencial lúdico, fazendo com que trabalhar seja maçante; e inevitavelmente exploratório.
Queremos uma sociedade que organize suas forças produtivas às necessidades humanas, e não ao mercado. Essa lógica de mercado cria o contrário, trabalhos que não produzem nada que atenda às necessidades humanas, como empregos de ‘colarinho branco'”, disse um moderador do fórum r/antitrampo.
Movimento considera escala 6×1 “inaceitável”. Enquanto os administradores se posicionam contra o modelo de trabalho, dizendo que “uma folga semanal nunca será aceitável”, membros do fórum publicam suas experiências trabalhando na escala, na maioria delas defendendo seu fim. “O negócio beira a escravidão”, aponta um usuário. “Me sinto cansada todo dia, trabalho em escala 6×1 e sinto que moro na empresa”, diz outra participante.
“Lutamos para a redução da carga horária e somos contra a exploração atroz que o trabalhador brasileiro é submetido. Estamos acompanhando a tramitação da PEC com muita atenção, estamos cobrando os deputados federais a representarem o interesse do trabalhador, incentivamos também manifestações nas ruas e estamos prontos para pressionar a CCJ pela aprovação da PEC contra 6×1”, disseram moderadores do fórum r/antitrampo.
Comunidade diz não ter ideologia política, mas pender para a esquerda. “Por definição somos trabalhadores assalariados. Alguns de nós são comunistas, outros são anarquistas ou apenas críticos ao modelo neoliberal”, explicam os gestores do r/antitrampo, que consideram a ideologia como secundário nas demandas trabalhistas. “Todos os trabalhadores que estão sendo precarizados através da uberização, da pejotização ou qualquer outra precariedade encontram no subreddit antitrampo um local seguro para suas queixas.”
Fórum não tem relação institucional com movimento VAT (Vida Além do Trabalho), mas ajudou em sua difusão. Os moderadores apontam que a comunidade “foi um dos espaços que ajudou a ‘incubar’ e difundir o VAT”, e dizem apoiar as pautas defendidas por ele. Entretanto, deixam claro que “não existe ligação direta entre a moderação do r/antitrampo e o VAT”.
DO QUE SE FALA NA COMUNIDADE?
Membros tiram dúvidas, desabafam e discutem política. Os gestores do fórum aponta que, na maioria das vezes, os membros usam o espaço para questionar sobre violações de direitos trabalhistas. “Horas extras não pagas, desvio de função e assédios são as ocorrências mais comuns”, dizem. Para os moderadores, a discussão sobre o trabalho é indissociável da filosofia, e é “um erro” quando a conversa se despolitiza.
Comunidade discute e propõe “quiet quitting”, que busca contrariar cultura “workaholic”. Diversas publicações no fórum defendem a prática do “quiet quitting” (demissão silenciosa, em português), que propõe a redução da produção.
Relatos mais populares contam sobre situações abusivas no ambiente de trabalho. Um deles, publicado no ano passado, mostra conversas entre uma funcionária e sua após anúncio de que os funcionários não receberiam o 13° salário, mas uma “mentoria” com o dono da empresa.
Outro usuário conta como os donos do restaurante onde trabalhava ameaçarem descontar do salário de todos os funcionários por um erro cometido por um deles.
SOCIÓLOGO APONTA TRABALHO EXTENUANTE COMO CAUSA DE MOVIMENTO
Ricardo Antunes, sociólogo do trabalho e professor da Unicamp, aponta que o trabalho se tornou “sem sentido para as massas”. Ele enxerga que o estado atual dos trabalhadores é de uma população sem controle do próprio tempo e desanimada frente ao próprio futuro, e acredita que a manutenção da escala 6×1 colabora com isso.
Emprego ultrapassou a ‘aparência da felicidade’, aponta professor. Antunes explica que o proletariado atual trabalha muito para poder “descansar e viver, mesmo que numa idade mais avançada”. Entretanto, chegam ao fim da vida conquistando pouco, o que gera desânimo e desencanto com a vida. O funcionário “trabalha, trabalha, trabalha, sem chance de efetivamente viver bem depois”, explica.
Controle do tempo é questão central e ideia de “autonomia” é falácia. “Quem controla o tempo de trabalho e quem controla o tempo de vida, controla a riqueza e vive melhor”, diz Antunes. Ele ainda afirma que os trabalhadores brasileiros querem ser independentes no seu trabalho, mas acabam cooptados numa ideia de autonomia que não passa de uma “brutal sujeição com aparência de liberdade”.
“Qual é a realidade cotidiana do trabalho? Adoecimentos físicos e mentais, assédio, depressões, desencantos, suicídio”, disse Ricardo Antunes, sociólogo do trabalho e professor de sociologia da Unicamp.
“É absurdo viver sem trabalho”, aponta Antunes. O professor reconhece que não pode existir uma sociedade funcional em que ninguém trabalhe, mas aponta que a motivação atrás do movimento antitrabalho é a recusa ao “trabalho da exaustão, do adoecimento e das jornadas ilimitadas”.
“Se você propusesse em Manchester, em 1820, onde mulheres e crianças realizam jornadas de 16, 17 horas, para lutar por uma jornada de oito horas, iam dizer que fiquei louco, que não tem chance. O que eu quero dizer? Eles têm razão em votar por uma sociedade de outro tipo, mas isso é uma batalha profunda. É uma batalha que passa pela organização e ação desses trabalhadores. [A mudança por mais direitos] Não vai ser obra do judiciário, não vai ser obra de professores, e muito menos uma dá de uma das grandes empresas”, disse Ricardo Antunes.