Entenda por que a pandemia aumentou a solidão entre as mulheres
Quase 290 mil mulheres moravam sozinhas na cidade de São Paulo, enquanto os homens somavam 215 mil, segundo o Censo de 2010
Roberto de Oliveira, de SP – Na garupa da moto, abraçada ao marido, vento no rosto, ela se sentia revigorada depois de o casal ter superado a Covid-19. Ambos foram infectados pelo vírus, mas o quadro dele foi mais grave, passou 18 dias intubado numa UTI.
Aquele passeio celebrava uma superação. Sete meses depois, Daniela Souza Antoneli, 49, foi surpreendida pela morte do companheiro, vítima de infarto. Desde 28 de dezembro, passou a viver sozinha. “Fui mutilada. Estou aprendendo a conviver com o que restou de mim”, conta.
Vez ou outra, dá vontade de sumir, desaparecer. “A sensação de desamparo é recorrente. Maior que ela só mesmo o desejo de seguir em frente.”
Moradora do Tremembé, zona norte da capital, Daniela tem uma filha de 23 anos, que vive no interior paulista. Hoje, ela se apoia na companhia dos cães, Kika, 11, Nany, 8, e Buzz, 5, assim como no contato remoto que mantém com os amigos e os parentes.
O sentimento profundo pela morte de um ente querido se avoluma num estágio de restrições ainda mais severas diante do descontrole de transmissão do coronavírus. “Entre abril e maio do ano passado, tinha vivenciado uma espécie de luto precoce, quando ele estava grave, em coma.”
Numa época em que os dias parecem todos iguais, viver só e ainda confinada é um desafio de superação e, sobretudo, um aprendizado. “Num momento tão solitário e desesperançoso como agora, com pouca vacina, a solidão tem sido um exercício diário de renovação e fé. Independentemente do que sinto, estou à procura de um novo sentido para a minha vida.”
Quase 290 mil mulheres moravam sozinhas na cidade de São Paulo, enquanto os homens somavam 215 mil, segundo o Censo de 2010.
Patrícia Mattos, psiquiatra da Unifesp, explica que nossos mecanismos naturais de autocura estão intrinsecamente ligados a uma presença humana de segurança. “Só que, neste momento, estar com o outro é uma ameaça”, diz ela.
A administradora de empresas Nádia Martins, 43, ainda tateia esse universo. Há um ano e dois meses, ela perdeu o pai. Três meses atrás, quem partiu foi a mãe. Enquanto digeria o luto, ficou desempregada. “Em pouco mais de um ano, minha vida virou completamente de cabeça para baixo. Perdi as minhas referências.”
Nestes tempos frágeis, Nádia diz que está se reerguendo. “Cada dia é uma descoberta.”
O período em que a solidão parece bater mais forte é à noite. “Quando tudo se aquieta, sinto-me solitária. É uma fase lenta e dolorosa de aprender a cuidar de mim como eu cuidava dos meus pais. Mas, apesar de estar sozinha, nem sempre me sinto só”, afirma.
Pode até parecer paradoxal, mas estar só não é necessariamente sentir-se só, na avaliação de Paulo Sérgio Boggio, 46, coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Mackenzie. Explica: “Há pessoas que vivem com outras e sentem solidão assim como há aquelas que vivem só, mas com uma rede de contatos, carinhos e ideias que não as faz se sentirem sozinhas”.
Arthur Danila, coordenador do programa de mudança de hábito e estilo de vida do Instituto de Psiquiatria do HC da USP, afirma que a pandemia nos impôs um luto da liberdade. Encontrar novos significados para a vida ganha proporções ainda mais desafiadoras.
“É nessa hora que transformamos adversidades e tragédias em resiliência social. Nos modificamos e nos fortalecemos ao entender que o isolamento implica perdas e restrições, mas também amplia nosso repertório, permitindo transformar solidão em solitude”. Diz mais: “Temos a chance de aprender que podemos ser nossos melhores companheiros. Nos permitir conviver em harmonia conosco mesmos e, assim, poder enxergar melhor o outro”.
Na lida com a solidão, a bióloga Sylvia Maria Affonso, 41, mantém atividades virtuais em diferentes grupos de dança, ioga e meditação. Reserva todas as noites de terça para ligar para os amigos. “Por sorte, eles estão disponíveis para conversar e manter esses vínculos tão vitais.”
Foi durante o isolamento que esses encontros foram redesenhados e ganharam maior relevância. “Descobri quais são as pessoas de fato importantes para me dedicar mais tanto a elas quanto a mim.”
Aos 86 anos, Hermínia Carvalho dos Santos não tem cabeça nem paciência para lidar com apetrechos tecnológicos. “Minha ligação com o mundo se dá pelo meu único companheiro, o rádio.” Nos anos 1950, ela cantava em programas radiofônicos no Rio, sua terra natal. “Canto, danço, as músicas me trazem alegria e esperança. Vivo de recordações para não cair na fossa.”
Católica, devota de São Jorge e Santa Bárbara, ela se conecta às 18h, diariamente, com a fé. “Quando alguma coisa não anda bem, eu logo me agarro aos meus protetores”, conta.
Viúva, Hermínia tem quatro filhos, cinco netos e quatro bisnetos. Tomou as duas doses da vacina. Agora, espera ansiosamente pela imunização dos entes queridos.
Não reclama do fato de morar sozinha. “Viver só tem suas recompensas, não preciso dar satisfação a ninguém. Se quiser, fico pelada”, brinca. “Por outro lado, quero abraçar e beijar a minha família. Sinto muita falta do toque.”
Tocar os outros tem efeito positivo na percepção de cenários negativos. O chamado toque afiliativo traz sensação de conforto e suporte. “Isso ajuda a enfrentar situações negativas com mais segurança”, diz o professor Boggio.
Compartilhada por muita gente que mora só, a preocupação de Hermínia é o medo de morrer sozinha, sem que ninguém se dê conta de sua partida. “Como boa capricorniana, sou teimosa e tenho muita fé. Espero que essa tragédia acabe logo e eu continue aqui.”