Por que um videogame russo incomodou a TV de Putin e saudosos da União Soviética
"O jogo é baseado na nossa experiência de viver aqui. Sem dúvidas, 'Militsioner' é uma crítica à Rússia atual", diz Vladimir Semenets, diretor de arte do game
Eduardo Moura, de MG – Tio Styopa era um miliciano bonzinho. Alto, forte e bonito, ele dava bons exemplos para as crianças e ajudava mulheres em apuros. O personagem criado em 1935 pelo escritor infantil Sergey Mikhalkov habitou o imaginário de jovens de várias gerações na União Soviética.
O simpático membro da milícia -ou “milítsia”, como a polícia era conhecida por aquelas bandas- representava ideais de justiça, solidariedade e altruísmo.
“No passado, o personagem passava uma imagem positiva à polícia e de certa maneira reforçava o prestígio da carreira policial no imaginário das crianças”, conta Vicente Ferraro, cientista político especializado na época pós-soviética.
O policial boa-praça nasceu de um poema, virou desenho animado, habitou livros escolares e agora em 2021 ganha uma versão em videogame. Só que neste jogo, Tio Styopa é o vilão da história. Em “Militsioner”, game russo ainda inédito, o jogador tem de escapar de um vilarejo ermo e cinzento, enquanto é vigiado e perseguido pelo gigante autoritário. Não se sabe ao certo qual o crime cometido pelo personagem que tenta escapar -ele simplesmente precisa fugir.
“O jogo é baseado na nossa experiência de viver aqui. Sem dúvidas, ‘Militsioner’ é uma crítica à Rússia atual”, diz Vladimir Semenets, diretor de arte do game.
O game incomodou alguns russos. Numa reportagem do canal estatal de notícias Russia 24, o jogo é acusado de incitar medo por pessoas de uniforme militar, de tentar fazer hype em cima de polêmica e de ser russofóbico. O canal ainda destacou um tuíte em que se questiona o porquê de um policial russo ser vilão num jogo quando o mundo passa por um momento em que condutas de policiais ocidentais é que estão sob os holofotes.
Falar de política não era o objetivo inicial, só que os criadores logo perceberam que “não tem como falar da Rússia atual sem tocar em política”, conta Dmitry Shevchenko, diretor do jogo.
O próprio nome do jogo, diz Shevchenko, remete a uma Rússia estagnada. “Militsioner” era como eram conhecidos os policiais na União Soviética -o nome só mudou para “policial”, de fato, em 2011, dez anos após o período soviético. Mas o termo “militsioner”, ou milícia, ainda é usado no cotidiano do país, sobretudo por pessoas mais velhas.
“A gente estava pensando em como poderia representar esse policial gigante, esse personagem icônico do imaginário russo. Sua altura e sua profissão são as semelhanças com o personagem original, mas terminam por aí. Tio Styopa era um personagem muito plano, só tinha um lado, o positivo. Nós quisemos dar a ele uma personalidade mais conflituosa, cinzenta -que tem mais a ver com o papel de um policial nos dias de hoje”, diz Semenets.
“Militsioner” tem uma aura sombria e influência de games elogiados pela sua direção de arte, como o dinamarquês “Inside” e o japonês “Shadow of the Colossus”.
Hoje em dia é mais provável que os jovens nascidos sob Putin estejam mais familiarizados com “Free Fire” e k-pop do que com o Tio Styopa -e o incômodo causado por “Militsioner” também diz muito sobre um conflito de gerações presente no país.
De acordo com pesquisa publicada em 2020 pelo Levada, principal centro de estudo de opinião pública independente no país, 75% dos russos afirmam acreditar que a era soviética foi o melhor período da história da região. Se for feito um recorte por idade dos respondentes, é possível notar como as diferentes gerações divergem. Entre as pessoas de 18 a 24 anos, 33% lamentam o fim da URSS -o que é um número alto, mas pequeno se comparado com a fatia dos que possuem mais de 55 anos, dos quais 82% lamentam o fim da era soviética.
“Nos protestos promovidos pela oposição, é marcante a predominância de jovens, sobretudo da ‘geração Putin’ -aqueles que nasceram ou cresceram durante o governo Putin”, diz Ferraro.
Dezembro deste ano marcará os 30 anos do fim da União Soviética. Mas em 2021 autoritarismo e culto ao militarismo não são coisas do passado. “Há uma série de restrições a liberdades individuais que vêm sendo reforçadas com o endurecimento do regime e reformas antiliberais”, diz o cientista político Vicente Ferraro.
“O pacote de reformas de 2016 está entre as inovações legislativas que caminharam nessa direção. Há casos e denúncias de violação de direitos de ativistas políticos, jornalistas, representantes da comunidade LGBT e de algumas minorias religiosas.”
O pesquisador afirma ainda que o discurso de legitimação do governo Putin se baseia principalmente “no argumento de que o país vivenciou um verdadeiro caos político, econômico e social nos anos 1990 e graças à mão forte de Putin a ordem e estabilidade foram restabelecidas”.
“Para as gerações mais novas, que não vivenciaram o período de turbulências após a dissolução da URSS, esse discurso tem menor adesão. O mesmo ocorre com a nostalgia em relação ao período soviético”, diz Ferraro.
Os grandes veículos de comunicação, sobretudo os de televisão, pertencem ao Estado, pelo menos parcialmente. Não é raro se deparar com filmes e seriados que relativizam as atrocidades cometidas durante a União Soviética, diz Ferraro. “Por outro lado, há também obras que retratam criticamente o stalinismo, a cortina de ferro, a repressão política, o déficit de produtos e o centralismo burocrático.”
Segundo o diretor de arte Vladimir Semenets, “a TV estatal russa não deve ser levada muito a sério”. “As ações deles foram prejudiciais, sem dúvida, mas cão que ladra não morde. Para nós, aparecer no canal deles foi mais como uma piada triste e amarga.”