A dramática situação de bar que teve a luz cortada e precisou jogar estoque de carne fora
"Pagamos o que dá", diz Mateus Ferraz, 37, irmão de Robson e sócio proprietário do boteco
Luís Cláudio Cicci, de MG – Alarme desligado, cheiro de comida estragando e uma cozinha na escuridão. Foi o que o empresário Robson Ferraz, 36, encontrou ao abrir a porta do boteco Alfaiataria, em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, numa manhã do fim de março. O motivo do corte de energia foi a inadimplência de uma dívida que chegou a R$ 3.600, resultado da falta de clientes com a pandemia de Covid-19, que afetou o setor de bares e restaurantes pelo país.
“Pagamos o que dá”, diz Mateus Ferraz, 37, irmão de Robson e sócio proprietário do boteco.
Dois dias antes do corte de luz, os irmãos haviam comprado 42 quilos de ingredientes, como linguiça, almôndegas e cortes de carnes bovina, suína e de frango. O estoque custou R$ 1.800 e seria suficiente para sustentar duas semanas de vendas de sanduíches. Seria. O destino do estoque foi a caçamba de lixo.
Sem luz e ingredientes para fazer os lanches, a Alfaiataria não vendeu sanduíches naquele dia, uma alternativa de renda desde que o salão fechou, no começo da pandemia. Os sócios perderam o faturamento daquela noite, a primeira com permissão para o recebimento de encomendas até 20h, depois de um período de comércio fechado ou com autorização de vendas só até 18h.
Robson, então, publicou vídeo com desabafo numa rede social, para explicar aos clientes o que tinha acontecido. “A tristeza que estou sentindo agora não é porque não vou vender sanduíche. Eu vi gente pegando comida na caçamba. Avisar a data em que a energia será cortada é muito mais digno que jogar fora comida na pandemia”, disse na postagem, com voz embargada.
Nos bons tempos, até o começo de 2020, a Alfaiataria teve onze empregados fixos, entre cozinheiras, ajudantes, garçons, músicos e caixas. Em noites movimentadas, com shows ao vivo e ajuda de temporários, o time somava 25 pessoas para atender a 125 pessoas sentadas.
O delivery de lanches, de quarta-feira a domingo, virou alternativa para bancar parte das despesas mensais, que os irmãos dizem chegar a R$ 8.000. O aluguel, por exemplo, está atrasado há seis meses. O local só conseguiu manter três empregados.
No dia seguinte, com a conta de energia paga graças à ajuda de parentes, Robson foi repor o estoque de carnes. Ao chegar ao caixa para o acerto, soube que estava dispensado de pagar os R$ 800. O atendente do açougue, filho do dono, tinha visto o vídeo publicado na noite anterior. A postagem, naquele momento, chegava às 20 mil visualizações.
“Nosso negócio não parou, a demanda até cresceu com o home office, e é parte do nosso papel na comunidade”, diz a administradora Flávia Freitas, 42, filha do dono e responsável pelo controle financeiro do Açougue do Nilo.
“Foi quando a chave mudou na minha cabeça”, disse Robson.
A boa notícia fez Mateus e Robson se comprometerem a distribuir uma cesta básica para cada dez sanduíches que vendessem, no dia 25 de março. Em vez dos 30 lanches usuais por noite, chegaram aos 80.
No movimento seguinte, saíram da chapa quente da Alfaiataria 150 unidades de pernilton, bola de carne bola de bacon, lomborges, sandubão de estudante, amargão da américa e cuitelinho, nomes que homenageiam o Clube da Esquina. E os pacotes de alimento para doação somaram 23.
Com a Páscoa, chegaram no bar os ovos de chocolate. E livros. Outro cliente ofereceu o frete de um caminhão e cedeu o espaço para a guarda das mercadorias. Um cliente, fã da galinhada feita pela mãe, que ofereceu trinta refeições e inspirou outra pessoa a doar 200 pratos da mesma iguaria. Finalmente, amigos dos irmãos Ferraz donos de outros quatro botecos se juntaram à iniciativa solidária.
A ideia ganhou nome, Projeto Cestou, escrito com c, e já ganhou réplicas na vizinha Araguari (MG) e na distante Florianópolis (SC). “Eu estava respondendo um post numa rede social, queria usar a hashtag sextou, escrevi errado, achei engraçado e vi que era o nome que faltava”, explica Robson. É ele quem controla o vem e vai de cestas básicas. Até semana passada, já tinham sido movimentados 610 pacotes.
O sócio-proprietário do Alfaiataria tem rodado com seu carro popular 2001 por bairros da pariferia e visto realidade que não é novidade para quem mora em Uberlândia há mais de década. “Percebo que até quem antes podia ajudar agora precisa de ajuda”, comenta. “É trabalho que cansa, sei lá por quanto tempo dá para segurar. Comparo com enxugar gelo, mas são famílias que vão ter o que comer durante alguns dias.”
“O ideal, hoje, seria pelo menos garantir a sobrevivência, que alguém se preocupasse com a nossa continuidade”, diz Mateus. “A reivindicação é por uma solução óbvia, que poupasse a gente do risco tão grande de fechar.”
Em levantamento da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrassel) com 2.000 empresários de todo o país, 91% disseram ter problemas para cumprir as obrigações com os funcionários neste mês.
O estudo também revela insatisfação pela demora do governo na adoção de medidas de apoio. Até dezembro do ano passado, segundo estimativa da associação, 35 mil empreendimentos do segmento baixaram as portas definitivamente, resultando na perda de 100 mil postos de trabalho.
Procurada, a Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) não informou se houve aumento, desde o início da pandemia, nas suspenções do fornecimento de energia. Sobre o corte de energia no Alfaiataria, a Cemig informou que cumpriu as formalidades, com a antecedência exigida, para avisar sobre os débitos pendentes.