Papa Francisco testa ‘soft power’ do Vaticano ao criticar guerra na Ucrânia
Declaração foi uma reprimenda ao governo de Vladimir Putin, que se esforça para emplacar um eufemismo sobre as agressões bélicas no país vizinho
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Papa Francisco sem panos quentes: ‘Não é operação militar especial, é guerra!'”
A manchete na versão em português da Aleteia, portal católico de alcance global, é uma boa tradução da avaliação recorrente sobre o 266º líder à frente do Vaticano: Francisco está disposto a comprar brigas na diplomacia internacional. A declaração, feita no domingo (6), foi uma reprimenda ao governo de Vladimir Putin, que se esforça para emplacar um eufemismo sobre as agressões bélicas no país vizinho.
“Na Ucrânia correm rios de sangue e lágrimas. Não se trata apenas de uma operação militar, mas de uma guerra que semeia morte, destruição e miséria”, disse o pontífice.
A desenvoltura política de Francisco já foi testada em outras ocasiões. Ele tinha pouca quilometragem na chefia da Cúria Romana quando se tornou um dos principais intermediários do diálogo entre EUA e Cuba, um ex-puxadinho soviético, então liderados pelo presidente Barack Obama e o dirigente Raúl Castro.
Dois anos depois, em 2016, deu um passo histórico ao se encontrar com o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo. A reunião deu fim ao cisma de mil anos que rachou a cristandade entre Oriente e Ocidente -líderes dessas duas alas do catolicismo não aceitavam dividir a mesma sala desde o racha, em 1054.
Mesmo antes, em 2014, em seu segundo ano na Santa Sé, o papa disse que havia conversado com Cirilo, num telefonema em que fez a seguinte proposta: “Irei aonde você quiser. Chame que eu vou”.
Quando afrouxou no posicionamento político, Francisco tratou de se explicar.
Cinco anos atrás, foi a Mianmar, no que seria a primeira visita de um papa ao país de maioria budista. Estima-se que, ali, naquele mesmo 2017, uma repressão militar matou 10 mil muçulmanos da minoria muçulmana rohingya. Bispos locais o aconselharam a não tocar o dedo na ferida, ao menos não em solo mianmarense. Ele acatou e não citou diretamente o povo sob ameaça.
“Francisco é muito persuasivo, mas não tem o poder de resolver todos os conflitos”, disse à época o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, que ainda emendaria: eis um papa que não teme “campos minados”.
Dias depois, na vizinha Bangladesh, a compensação. O pontífice segurou as mãos, uma a uma, de 16 sobreviventes da limpeza étnica e prometeu: “Não vamos fechar nossos corações ou desviar nosso olhar. A presença de Deus hoje se chama rohingya”.
“A Santa Sé, na sua diplomacia, não tem um poder de persuasão como os mecanismos que outros países têm. O que ela tem é soft power, poder de influência, mais do que de convencimento”, afirma o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Vai meio que costurando relações. E [o atual papa] é muito diplomático, tenta com todas as forças chegar a todos os cantos.”
Foi Francisco quem mandou abrir os arquivos secretos que o Vaticano mantinha sobre o pontificado de Pio 12 (1939-58), demanda que judeus fazem há décadas. Parte da comunidade judaica acusa Pio 12 de ter sido omisso sobre o Holocausto, por não ter feito qualquer condenação enfática sobre o extermínio levado a cabo por nazistas na Segunda Guerra Mundial.
Nada pacificado é o debate sobre o envolvimento daquele papa com o antissemitismo. Alguns vaticanistas argumentam que a postura mais neutra era intencional -seria a melhor proteção que poderia oferecer aos judeus e à integridade da Igreja Católica alemã, dada a perigosa onda antirreligiosa daqueles tempos. Também há relatos de que ele teria ajudado, em silêncio, famílias judaicas.
O caso contra uma suposta simpatia a princípios nazistas também é forte. Em “O Papa de Hitler: A História Secreta de Pio 12”, o jornalista inglês John Cornwell reproduz cartas de quando o italiano Pio 12 era núncio apostólico na Alemanha -espécie de embaixador da Santa Sé–, antes de virar papa. Nelas, descreve uma divisão do Partido Comunista Alemão como “caótica, corrupta e cheia de judeus” e chama o líder comunista Max Levien de “um judeu pálido, sujo, de olhos entorpecidos, voz rouca, vulgar, repulsivo”.
Durante a Primeira Guerra, Bento 15, o papa da vez, fez gestos ativos para mediar uma paz entre as partes beligerantes. Chegou a propor, em dezembro de 1914, uma trégua natalina: “Que as armas silenciem pelo menos na noite em que os anjos cantaram”. Oficialmente ignorado, o apelo ecoou de forma informal em algumas trincheiras, com relatos de inimigos que chegaram a trocar bebidas e cigarros como presente.
Bento 15 buscou se manter neutro na disputa, o que o levou a ser excluído do Tratado de Versalhes, de 1919, o ponto final formal daquela guerra. Ainda assim, um discurso dele divulgado dois anos antes acabou incorporado ao plano de paz sugerido pelo então presidente americano, Woodrow Wilson.
João 23 deu sua colaboração para tentar apaziguar a Guerra Fria, que se seguiu às duas Grandes Guerras. Publicou a encíclica “Pacem in Terris” (paz na terra) na Páscoa de 1963, meses após a Crise dos Mísseis em Cuba, os 13 dias de impasse entre EUA e União Soviética que colocaram o mundo à beira de uma guerra nuclear. Nos escritos, pediu o banimento das armas atômicas -não foi ouvido.
Ele já havia se pronunciado em 24 de outubro de 1962, em meio ao furdunço envolvendo as duas maiores potências daqueles tempos. Em francês, tido como idioma da diplomacia internacional, João 23 suplicou “a todos os governantes que não fiquem surdos a este grito da humanidade”.
A crítica ao comunismo perdurou por todo o pontificado de João Paulo 2º, que viu a Igreja Católica ser perseguida pelos soviéticos em seu país natal, a Polônia. Em 1998, visitou Cuba e politizou a discussão antes mesmo de aterrissar em Havana. No avião, disse a jornalistas que sua posição era cristalina. “Os direitos humanos são direitos fundamentais e a base de toda a civilização. Levei esta crença à Polônia no meu embate com um sistema comunista totalitário.”
“João Paulo 2º teve uma capacidade de influência muito grande”, diz Domingues, da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Dizia que nem o capitalismo nem o comunismo respondem totalmente às necessidades humanas. Mas, na prática, foi muito mais vocal contra o comunismo.”
Veio de Santo Agostinho, um dos teólogos mais importantes do cristianismo, que viveu entre os séculos 4 e 5, a tese de que algumas guerras seriam moralmente mais justas do que outras. O conceito foi se diluindo, sobretudo diante da invenção de arsenais tão arrasadores como os nucleares.
“Uma bomba atômica, como sabemos, destrói tudo, destrói a vida também para o futuro e, portanto, nada pode justificar o uso de armas tão poderosas”, afirmou em 2020 frei Giulio Cesareo, professor de teologia moral, à Rádio Vaticano. Ele comentava um discurso papal proferido dias antes.
Nos nossos tempos, lamentou Francisco, “o mundo, a política e a opinião pública correm o risco de se acostumar ao mal da guerra, como companheira natural da história dos povos”. Deus nos livre.