Escolas estaduais ofertam ao menos 1.526 disciplinas no novo ensino médio
Em alguns estados, as escolas têm autonomia para criar quantos e quais componentes curriculares julgarem necessários.
ISABELA PALHARES, SP- As redes estaduais de ensino do país estão ofertando ao menos 1.526 opções de disciplinas no novo ensino médio. Criadas sob o argumento de que tornariam essa etapa mais próxima aos interesses dos jovens, elas têm sido alvo de críticas de estudantes e professores por, segundo eles, tomarem o tempo de aula dos conteúdos curriculares tradicionais.
Insatisfeitos com a nova estrutura do currículo escolar, estudantes protestaram em mais de 50 cidades de todas as regiões do país na última quarta (15) para pressionar o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a revogar o modelo.
Em nota, o MEC disse ter a “convicção de subsidiar qualquer tomada de decisão e reavaliação quanto ao Novo Ensino Médio com base em diálogo amplo e democrático”, por isso, decidiu implementar uma consulta pública com audiências, oficinas de trabalho, seminários e pesquisas nacionais com a comunidade escolar sobre o processo de implementação do modelo.
Levantamento feito pela reportagem, com as Secretarias de Educação estaduais (que são responsáveis por mais de 80% das matrículas nessa etapa), mostra que elas oferecem ao menos 1.526 opções de disciplinas. Esse número pode ser maior, pois, em alguns estados, as escolas têm autonomia para criar quantos e quais componentes curriculares julgarem necessários.
Além do grande número de disciplinas em oferta em todo o país, o levantamento identificou como o novo ensino médio foi implementado de forma diversa em cada estado. Enquanto o Piauí, por exemplo, oferece sete disciplinas diferentes aos seus estudantes, o Distrito Federal dispõe 601.
As disciplinas não são ofertadas em todas as escolas nem para todos os anos, mas elas são, segundo as secretarias, definidas de acordo com a demanda dos estudantes. As pastas não explicam, porém, como é feita essa consulta de interesse.
Para estudantes, a ampla oferta de disciplinas com temas tão diversos atrapalha o aprendizado de conteúdos que consideram essenciais. Em algumas escolas, por exemplo, são oferecidas aulas como RPG-conquistadores do mundo, Torne-se um milionário ou de esportes radicais.
Com alto índice de abandono escolar e baixo nível de aprendizado, o ensino médio é considerado há anos um dos gargalos da educação básica do país. Com o objetivo de reverter os resultados negativos, o governo Michel Temer (MDB) aprovou em 2017 a reforma dessa etapa.
Pela lei aprovada, o ensino médio foi organizado em duas partes. Assim, 60% da carga horária dos três anos dessa etapa são comum a todos, com as disciplinas regulares. E os outros 40% são formados por optativas dentro de grandes áreas do conhecimento, os chamados itinerários formativos.
Assim, os alunos devem escolher em qual área querem aprofundar os estudos, entre cinco opções gerais: matemática e suas tecnologias; linguagens e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas; e ensino técnico profissionalizante.
O novo modelo estabeleceu que as redes de ensino têm autonomia para definir quais itinerários ofertam, assim como as disciplinas que os compõem, considerando os interesses da comunidade escolar.
Estudantes e professores reclamam que os itinerários formativos foram implementados de forma desorganizada, sem estrutura nas escolas e preparo do corpo docente para dar aula dos mais variados temas.
Também dizem que as novas disciplinas não permitem o aprofundamento nas áreas de conhecimento e, na prática, ocupam o tempo na escola com atividades sem benefícios para a formação escolar.
Kaick Pereira da Silva, 18, terminou os estudos em uma escola estadual em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, no ano passado, e avalia que parte da carga horária foi perdida com essas novas disciplinas.
Sem ter conseguido uma boa nota no Enem, ele decidiu que voltará para um curso de ensino médio neste ano em um instituto federal para ter as disciplinas comuns.
“Eu quero fazer graduação em geografia, por isso, fiz o itinerário em ciências humanas. Mas as aulas não me permitiram o aprofundamento nas disciplinas que eu queria estudar. Em vez de estudar história e geografia, tive que fazer uma disciplina de comunicação e marketing”, afirma.
A disciplina era ensinada por um professor de português e tinha como propostas, por exemplo, que os alunos criassem rótulos de produtos.
“Tinha que usar um programa chamado Canvas [plataforma de design gráfico] para criar os rótulos, mas nem o professor tinha sido ensinado como usá-lo. Ele pedia que a gente buscasse explicações no YouTube para conseguir fazer as atividades.”
Alunos deparam-se ainda com problemas ao mudar de unidade e não conseguir dar continuidade às aulas que frequentavam antes.
“É uma grande falácia dizer que os alunos estão escolhendo estudar o que os interessa. Eles estão tendo que aceitar o que as escolas conseguem oferecer. A reforma esvaziou o aprendizado do ensino médio”, diz Daniel Cara, professor da USP e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Ele é um dos especialistas que defendem a revogação do modelo.
Cara destaca também as dificuldades que professores enfrentam com o novo modelo, já que tiveram a carga horária de suas disciplinas reduzida e assumem aulas em áreas para as quais não têm formação.
“O conhecimento e a experiência dos docentes estão sendo desprezados, porque eles precisam aceitar e se preparar para dar aula de uma disciplina nova a cada escola, a cada ano. É um desgaste desnecessário.”
Já Kátia Smole, diretora do Instituto Reúna (organização associada à Fundação Lemann, uma das entidades que ajudou a formular o novo ensino médio) e secretária de Educação Básica do MEC durante o governo Temer, opõe-se à revogação.
“Ajustes são necessários, precisamos dar mais apoio e formação aos professores e às redes para estruturar melhor os itinerários. A falta de liderança do MEC nos últimos quatro anos e a pandemia atrapalharam bastante a implementação, mas não podemos voltar ao ensino médio que tínhamos antes.”
Para Carlos Artexes, que foi coordenador-geral do ensino médio e diretor de orientações curriculares do MEC, a nova lei do ensino médio, em vez de dar mais liberdade para os sistemas de ensino, impôs a criação dos itinerários formativos e de disciplinas variadas.
“Desde 1996, com a LDB [Lei de Diretrizes e Bases] as escolas sempre tiveram a opção de aprofundar mais em algum conteúdo, dar uma carga maior de alguma disciplina ou criar algum componente curricular que considerassem importante. O que a reforma fez foi impor que todas tinham que criar algo, inventar itinerários que, em tese, interessam aos alunos.”
Como o ministro Camilo Santana já descartou a possibilidade de revogar o novo ensino médio e citou a necessidade de “rever falhas”, Artexes defende que o governo Lula reconsidere a obrigatoriedade da oferta de itinerários.
“As escolas deveriam, assim como ocorria antes, ter a liberdade para organizar suas aulas. O governo já determina quais são os conteúdos e habilidades que devem ser ensinadas e isso é suficiente.”