Bancada evangélica põe na mira atos de Lula sobre igualdade de gênero e raça
Em linhas gerais, os deputados que lideram a frente dizem considerar que o governo está usurpando a função do Congresso em legislar sobre esses temas, além de verem nas normas o que chamam de "ideologia de gênero"
RANIER BRAGON
Uma das bancadas mais poderosas do Congresso Nacional, a Frente Parlamentar Evangélica está em campanha contra uma lista de normas afirmativas editadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre elas a que instituiu o programa de equidade de gênero e raça no SUS e a que criou grupo para o enfrentamento da discriminação contra religiões de matriz africana.
A Folha de S.Paulo teve acesso à lista elaborada pela bancada, que foi levada na semana passada ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ao líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE).
Em linhas gerais, os deputados que lideram a frente dizem considerar que o governo está usurpando a função do Congresso em legislar sobre esses temas, além de verem nas normas o que chamam de “ideologia de gênero” termo cunhado por grupos religiosos de direita para atacar ações em defesa da comunidade LGBTQIA+.
No topo do índex elaborado pela bancada está a portaria 230/2023 do Ministério da Saúde, que instituiu o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no SUS (Sistema Único de Saúde).
A portaria, lançada na véspera do Dia Internacional da Mulher (8 de março), estabelece, entre outras diretrizes, “promover a equidade de gênero e raça no Sistema Único de Saúde buscando modificar as estruturas machista e racista que operam na divisão do trabalho na saúde”.
A portaria atraiu a ira de evangélicos principalmente por conter, em seu anexo, diretrizes como o “enfrentamento do machismo cultural, das formas de misoginia, sexismo discriminação étnico-racial, religiosa, geracional, orientação sexual e identidade de gênero ou quaisquer outras formas de preconceito”; e a “inclusão da temática da orientação sexual e identidade de gênero nos processos de educação permanente desenvolvidos pelo SUS”.
“Esse [a portaria], para mim, é o mais grave, porque ele deixa em aberto, o que nunca existiu numa portaria, a questão de ideologia de gênero. Ela botou todo o arcabouço da ideologia de gênero nos anexos, e aí eu acho que isso é gravíssimo”, afirma o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).
“Abre um precedente e tem financiamento público na formação de médicos, de enfermeiros, fisioterapeutas, toda área da saúde com dinheiro do SUS para esse tipo de política pública”, completa.
Sóstenes presidiu a frente evangélica em 2022 e atualmente é o segundo vice-presidente da Câmara.
Ele disse ainda que, na reunião, o líder do governo se mostrou surpreso com a extinção da Senapred (Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas).
Guimarães teria afirmado na ocasião desconhecer esse ato, acrescentando destinar emendas parlamentares para comunidades terapêuticas conveniadas à Senapred, cujo acolhimento geralmente é baseado no isolamento, abstinência e religiosidade.
Após pressão de setores evangélicos, o governo Lula criou o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, embora o governo diga que o modelo está sob revisão.
Outro flanco de ataque dos evangélicos é contra a criação, por decreto, de um grupo interministerial para elaborar políticas de enfrentamento à discriminação contra religiões de matriz africana.
“Nós respeitamos todas as religiões e queremos que todas as religiões sejam respeitadas. Porém nós não podemos fazer uma ação de uma religião em detrimento da outra. Acho que todas, de igual modo, têm a mesma liberdade, até para fazer preleções a favor ou em detrimento uma da outra”, afirma o atual presidente da frente, o deputado Eli Borges (PL-TO).
Além da portaria e do decreto, o documento entregue pela bancada a Lira e a Guimarães contém outras 11 normas baixadas pelo governo em março, com o título “decretos com gênero”.
Entre eles, estão: 1) o que instituiu o grupo de trabalho para a elaboração do Programa Nacional de Ações Afirmativas; 2) o que cria uma cota para negros no preenchimento de cargos em comissão na máquina federal; 3) o que institui o Programa Mulher Viver sem Violência; 4) e o que estabelece procedimentos para acesso à Terra Indígena Yanomami que contém a proibição “do exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas”.
Eli Borges afirma haver pontos positivos e negativos em todas essas medidas, mas que elas deveriam ser tratadas pelo Congresso, não por normas editadas pelo governo sem participação do Legislativo.
“Quando se olha a lista de decretos do presidente Lula e de portarias que vêm de ministérios, nós percebemos que ele está em um esforço hercúleo para governar através de decretos e portarias, sem respeitar o Poder Legislativo. Parte desses decretos tem a política que nós discordamos dela. A política afirmativa, que tem que nascer do Parlamento”, diz o deputado.
A bancada evangélica reúne mais de 100 dos 513 deputados da Câmara e, historicamente, tem se colocado como adversária dos partidos do campo da esquerda.
Em 2015, por exemplo, a bancada foi uma das principais propulsoras do chamado “kit gay”, uma fake news que se espalhou na primeira gestão de Dilma Rousseff (2010-2014).
Parlamentares e grupos religiosos afirmavam na ocasião que o governo do PT estaria distribuindo material pornográfico a crianças do ensino fundamental.
Na verdade, o kit, à época sob análise do Ministério da Educação, era direcionado a professores e alunos do ensino médio e integrava o programa Escola Sem Homofobia, cujo objetivo era combater o preconceito nas escolas.
Elaborado por ONGs contratadas mediante convênio e após cobrança do Ministério Público Federal, o material incluía um caderno direcionado aos gestores, boletins destinados aos estudantes e vídeos.
Jair Bolsonaro (PL) foi um dos políticos que estimularam as notícias falsas sobre o kit, tendo se projetado nacionalmente a partir desse caso, como ele próprio afirmou em várias notícias posteriores. Em seu governo, ele contou com amplo apoio dos evangélicos.
Já o governo Lula é aprovado por 38% da população brasileira neste início de gestão, mas entre os evangélicos esse percentual cai a 28%, como mostrou a mais recente pesquisa do Datafolha.
MINISTÉRIOS DIZEM QUE NORMAS SÃO URGENTES E FUNDAMENTAIS
Procurados, Arthur Lira e José Guimarães não se pronunciaram.
O Ministério da Saúde afirmou considerar fundamental o debate entre os Poderes, mantendo constante diálogo com o Congresso.
“Sobre o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS), a iniciativa trata do enfrentamento às desigualdades de gênero e raça, discriminação e preconceito de qualquer tipo de violências a trabalhadoras e trabalhadores de saúde”, disse a pasta, acrescentando que as mulheres representam 74% da força de trabalho no SUS.
“As ações previstas pelo programa vão ampliar as condições necessárias à prática da equidade.”
O ministério deu uma resposta inicial que, posteriormente, afirmou ter sido enviada de forma equivocada. O texto foi atualizado.
O Ministério da Igualdade Racial afirma que é preciso “apresentar uma solução para os crescentes casos de invasões a terreiros de candomblé, umbanda e outras religiões de matriz africana”.
De acordo com dados enviados pela pasta, de 2015 a 2018 foram registrados 3.288 casos de racismo religioso, “sem contar que os homicídios (seis, em 2016 no Pará) e a expulsão de lideranças religiosas dos territórios de favelas e bairros periféricos não têm sido contabilizados”.
“O decreto faz-se necessário nesse momento. Não impedindo então, de qualquer forma, que a matéria seja foco de discussão no Congresso Nacional a partir da sociedade. Inclusive, acreditamos que no futuro o Estado brasileiro possa aprovar um projeto de lei que promova mecanismos de combate ao racismo religioso e promoção da liberdade de crenças e religiões no Brasil.”