Entenda as resistências de Lula ao acordo entre Mercosul e União Europeia
Ele insiste que quer assinar o pacto, que já se arrasta há mais de 20 anos, mas repete em seus discursos três principais pontos de resistência

JÚLIA BARBON
O presidente Lula (PT) tem levado o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia aos holofotes frequentemente desde que voltou à Presidência. Ele insiste que quer assinar o pacto, que já se arrasta há mais de 20 anos, mas repete em seus discursos três principais pontos de resistência.
O petista critica o que chama de “ameaças de sanção” pelo bloco europeu, termos desiguais que levariam o Brasil a ser apenas um “exportador de matérias-primas” e ainda a abertura das licitações públicas a empresas estrangeiras, itens que a seu ver tornam o texto “impossível de ser aceito”.
Ele reiterou esses atritos em maio, ao lado do ditador venezuelano Nicolás Maduro; em junho, diante da líder do bloco europeu Ursula von der Leyen e do presidente francês, Emmanuel Macron; e também nesta semana, em frente aos presidentes que integram o Mercosul.
Sua posição foi seguida pelo argentino Alberto Fernández, mas contrariada pelo uruguaio Luis Lacalle Pou, que criticou a demora.
Negociado oficialmente desde 1999, o acordo entre os dois blocos foi concluído em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), mas ainda não foi assinado pelas partes.
O principal impasse para isso agora é um adendo ao texto, chamado de “side letter”, proposto pelos europeus no início deste ano para reforçar compromissos ambientais.
Abaixo, entenda cada um dos tópicos que têm criado tensões e travado mais uma vez as discussões.
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“PARCEIROS ESTRATÉGICOS NÃO NEGOCIAM COM BASE EM DESCONFIANÇA E AMEAÇA DE SANÇÕES”
A frase dita na última terça (4) por Lula, na cúpula do Mercosul, se refere à tal “side letter” proposta pela UE. Para entender o que esse adendo diz, é preciso voltar e explicar que o acordo de milhares de páginas concluído em 2019 tem um capítulo que se chama Comércio e Desenvolvimento Sustentável.
Esse capítulo prevê que as partes se comprometam a cumprir compromissos ambientais firmados no passado, como o Acordo de Paris, incluindo reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Mas ele é o único que não prevê um mecanismo chamado de “solução de controvérsias”, comum nos acordos da UE.
Esse dispositivo faz com que, na prática, os lados possam impor sanções a quem não cumprir o acordo. Diante do aumento da pressão ambiental na Europa e das ameaças vistas no governo Bolsonaro, a UE resolveu propor esse adendo ao capítulo que é confidencial, mas foi vazada por uma ONG ambientalista europeia.
O consultor Pedro da Motta Veiga, membro do Observatório de Comércio e Ambiente da Amazônia (OCAA), acredita, porém, que a proposta da UE é praxe no continente e é mais leve do que parece: “A carta repete artigos do Acordo de Paris, por exemplo, e no final traz um box que propõe que, no futuro, os países sentem para discutir a eventual possibilidade de se prever sanções, sem usar essa palavra”.
Ainda assim, o governo brasileiro considerou a proposta uma forma de imposição. “Um parceiro comercial não pode impor condições: ‘Se você não fizer tal coisa vou te punir, se você não cumprir o acordo de Paris vou te punir’. Acontece que os países ricos não cumprem nenhum dos acordos”, declarou Lula em live na terça.
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“NÃO TEMOS INTERESSE EM ACORDOS QUE NOS CONDENEM AO ETERNO PAPEL DE EXPORTADORES DE MATÉRIAS-PRIMAS, MINÉRIOS E PETRÓLEO”
Essa foi outra frase dita por Lula no Mercosul, que reflete sua visão de que o acordo concluído é desequilibrado. O texto prevê que os produtos europeus tenham tarifas de importação reduzidas no Mercosul (principalmente nos setores industrial, agrícola e alimentício) e que as exportações sul-americanas tenham preferência na UE.
Hoje, metade dos produtos exportados pelo Brasil ao bloco são primários, com destaque para óleos brutos, café e soja, e a outra metade tem maior valor agregado, como o farelo de soja. Em troca, o país importa da Europa apenas produtos industrializados, como medicamentos e partes de veículos.
Pedro da Motta Veiga, da OCAA, opina que o Mercosul fez mais concessões porque tem mercados mais fechados. “Qualquer acordo que Brasil e Argentina assinem vai parecer desbalanceado, porque temos tarifas maiores para os produtos”, diz.
Ele também pondera que o Brasil exporta muito mais matérias-primas à China, nosso maior parceiro comercial, do que à UE quase 80% da exportações ao gigante asiático são primárias.
A discussão é importante porque o bloco europeu ocupa o segundo lugar no mercado brasileiro. Por outro lado, o Brasil responde por 78% do comércio da União Europeia com o Mercosul.
Apesar da guerra na Ucrânia e da pandemia, em 2022, o comércio entre ambos atingiu o maior valor nos últimos dez anos, com as nossas exportações ultrapassando as importações.
“SE A GENTE ENTREGAR AS COMPRAS GOVERNAMENTAIS, O QUE VAI SOBRAR PARA A [EMPRESA] PEQUENA E MÉDIA BRASILEIRA?”
Esse é mais um dos argumentos de Lula, dito durante encontro com Nicolás Maduro em Brasília e em outras ocasiões. Ele se refere ao capítulo Compras Governamentais do acordo firmado em 2019, que garante “tratamento doméstico” a fornecedores estrangeiros contratados pelos governos dos países.
Como em qualquer acordo de livre comércio, porém, o dispositivo prevê limites e exceções. A abertura não vale, por exemplo, para compras de órgãos estaduais, municipais, empresas estatais e fundações públicas, além de equipamentos de construção, mineração, acessórios para caminhões, pesticidas, insumos estratégicos do SUS e programas de segurança alimentar.
Ela abarca licitações de bens inicialmente a partir de R$ 2,3 milhões e contratos de serviços de construção e concessões de obras públicas a partir de R$ 55 milhões valores que se reduzem com a vigência do acordo.
Alguns defendem que isso não afeta, portanto, pequenas e médias empresas, mas o governo vê prejuízos às indústrias.
Esse é um tema visto como crucial para o Brasil por corresponder a uma parcela significativa do PIB (Produto Interno Bruto) do país e por ser o mecanismo pelo qual o governo pode exercer suas políticas públicas para cumprir objetivos de desenvolvimento e redução de desigualdades.