Decisão do STJ pode anular operações e atingir apuração de financiadores do 8/1
Entendimento até então era que a polícia e o Ministério Público podiam fazer as solicitações, por meio de um sistema do Coaf
FABIO SERAPIÃO E MATHEUS TEIXEIRA
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma recente decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem potencial para anular investigações de crimes financeiros, lavagem de dinheiro e corrupção, de acordo com investigadores ouvidos pela Folha.
A Sexta Turma do STJ decidiu que a Polícia Federal não pode solicitar informações diretamente ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira) sem autorização da Justiça. O acórdão foi publicado em 15 de agosto.
O entendimento dos investigadores até então era o de que a polícia e o Ministério Público podiam fazer as solicitações, por meio de um sistema específico do Coaf, mas desde que houvesse um inquérito instaurado sobre o caso.
Segundo policiais ouvidos, caso o STF mantenha essa interpretação, centenas de investigações podem ser anuladas. Uma delas, apontam os investigadores, é sobre supostos financiadores dos atos golpistas de 8 de janeiro.
Para investigadores especializados em crimes financeiros e corrupção, a posição do STJ vai no sentido contrário da já manifestada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em julgamento sobre o tema em 2019, quando o Supremo avaliou pedido do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) para anular provas no caso da rachadinha.
No caso analisado pelo STJ, o voto vencedor na Sexta Turma foi o do ministro Antônio Saldanha Palheiro. Para ele, a possibilidade de solicitação direta da PF ao Coaf, sem autorização da Justiça, se enquadra “em uma situação diversa da qual foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal”.
Os advogados Gustavo Mascarenhas e Vinicius Gomes de Vasconcellos, responsáveis pelo habeas corpus que originou a decisão no STJ, afirmaram à reportagem que no caso concreto a PF solicitou as informações apenas dez dias após instaurar o inquérito e sobre um período de seis anos e cinco meses.
Para eles, a medida não “encontra guarida em qualquer fundamento” e não se enquadra no previsto pela decisão do STF de 2019, “visto que os próprios ministros do STF realizaram tal distinção no caso e em outros julgados posteriores”.
Sobre a posição do STJ, contra o pedido direto da PF ao Coaf, os advogados afirmam tratar-se do “controle das regras” do processo penal. “Entendemos ter andado bem a Sexta Turma do STJ ao impor controle à autoridade policial, evitando a pescaria indevida de informações.”
O Coaf se relaciona de duas formas com as policias e outros órgão de investigação. Na primeira, o próprio Conselho produz seus RIFs (Relatórios de Inteligência Financeira) e envia às entidades competentes para investigar as transações apontadas como suspeitas.
Uma segunda forma ocorre quando o próprio órgão de investigação solicita informações sobre determinadas pessoas ou empresas. Nesse caso, o Coaf busca em seu banco de dados se há algum apontamento de transação suspeita da pessoa indicada e então encaminha a quem solicitou. São os chamados RIFs de intercâmbio.
Esse tipo de solicitação, argumentam policiais, é utilizado para dar mais agilidade às investigações e para evitar, em momentos iniciais da apuração, medidas mais invasivas, como uma quebra de sigilo bancário.
O pedido ao Coaf é considerado muito menos invasivo uma vez que não tem poder de acessar totalmente o sigilo fiscal e bancário, mas somente transações apontadas pelos próprios bancos como suspeitas.
Os investigadores ouvidos pela Folha apontam que o julgamento de 2019 do STF não vetou a compartilhamento direto entre Coaf, polícias e Ministério Público.
Eles citam o voto do próprio ministro Dias Toffoli, que havia paralisado investigações com base em dados do Coaf. Ele votou por liberar o compartilhamento desde que seguindo as regras específicas.
O ministro disse em seu voto que “não há dúvidas, para mim, quanto a possibilidade de a UIF compartilhar relatórios de inteligência [RIF der intercâmbio] por solicitação do Ministério Público, da polícia ou de outras autoridades competentes.”
Segundo ele, a disseminação “deve ser feita única e exclusivamente mediante seus sistemas eletrônicos de segurança, que deverão ser certificados, com registro de acesso”.
Em 2019, no julgamento do STF, um dos argumentos utilizados pelos que defenderam a possibilidade do envio sem autorização da Justiça foi o cumprimento de acordos internacionais sobre combate a lavagem de dinheiro.
Assessores do próprio Dias Toffoli se reuniram com representantes do Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional) e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para tratar do assunto.
O diretor da Transparência Internacional Brasil, Bruno Brandão, afirma que a decisão do STJ “confunde os relatórios de inteligência financeira do COAF com quebra de sigilo bancário” e pode reduzir a capacidade do país de investigar casos de lavagem de dinheiro e até esquemas que envolvam tráfico de drogas e desmatamento ilegal.
“Em 2019, o plenário do STF já havia esclarecido que a produção e disseminação dos RIFs pelo COAF não implica quebra de sigilo bancário e, portanto, não deve ser condicionada a autorização judicial”, diz.
Brandão também reforça um receio citado por investigadores, de que a decisão do STJ pode impactar em compromissos assumidos pelo Brasil perante órgãos internacionais.
“Justamente neste momento o Brasil está passando por um processo de avaliação do Gafi que é o principal organismo multilateral de coordenação de esforços dos países no enfrentamento à lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo”, comenta.
O Gafi é um agrupamento governamental internacional que atua na proteção do sistema financeiro mundial por meio do desenvolvimento e da promoção de padrões globais de prevenção à lavagem de dinheiro.
Na última reunião do grupo, em agosto, um dos temas destacados foi justamente a capacidade das autoridades brasileiras de fazerem pedidos diretamente ao Coaf como uma forma de dar maior efetividade ao sistema de investigação desses crimes.