Lula reverte medida de Bolsonaro e reativa estatal de chips em meio a euforia e descrédito

Setor já vinha ganhando importância de maneira exponencial com o avanço tecnológico, mas atingiu outro patamar recentemente

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Lula reverte medida de Bolsonaro e reativa estatal de chips em meio a euforia e descrédito
Presidente Luís Inácio Lula da Silva. (Foto: Divulgação/Agência Brasil)

THIAGO AMÂNCIO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O fim do processo de liquidação da empresa estatal de chips e semicondutores Ceitec, anunciado no começo do mês pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), animou especialistas e representantes do setor, que vive momento de euforia com o aumento da demanda global e descentralização das cadeias de produção.

A empresa, no entanto, voltará em meio a desconfianças após mais de uma década de prejuízos e a fama de que seus projetos “não vingaram”.

Semicondutor é um material que controla um fluxo de eletricidade e é a matéria prima para a fabricação de chips, essenciais para a operação dos atuais dispositivos eletrônicos.

O setor já vinha ganhando importância de maneira exponencial com o avanço tecnológico de dispositivos eletrônicos, mas atingiu outro patamar ao entrar no centro do conflito comercial entre Estados Unidos e China. Além disso, a interrupção nas cadeias de fornecimento durante a pandemia afetou indústrias no mundo todo.

O efeito foi sentido também no Brasil. A Anfavea (associação de montadoras), por exemplo, afirma que o país deixou de fabricar 250 mil veículos em 2022 e 370 mil um ano antes por falta desses componentes eletrônicos.

“O mundo passou a fazer investimentos para criar resiliência da cadeia de semicondutores. Isso significa criar cadeias de manufatura global que não dependam de regiões nem de aspectos políticos”, diz Rogério Nunes, presidente da Abisemi (Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores).

A entidade diz que as empresas associadas no Brasil tiveram faturamento sem precedentes de US$ 1 bilhão (R$ 4,84 milhões) no ano passado. A produção brasileira é especialmente voltada para a indústria das chamadas “tics” (tecnologias da informação e comunicação), com componentes para computadores e celulares, mas também atua no setor automotivo e a eletrodomésticos.

No planeta, porém, a ordem de grandeza é outra. Avaliado em US$ 664 bilhões neste ano, com expectativa de se aproximar dos US$ 2 trilhões ao fim da próxima década, o mercado hoje se divide entre EUA, com pesquisa e desenvolvimento, e Ásia, na manufatura em si, onde mais de três quartos de todos os processadores do mundo são fabricados.

O destaque tecnológico é Taiwan, que produz 9 em cada 10 processadores de tecnologia mais avançada. A ilha, no entanto, é considerada uma província rebelde pelo governo chinês, que promete reanexá-la ao comando de Pequim.
Avessos a essas tensões, governos e mercados apostam no chamado “reshoring”, trazer de volta fábricas que atuavam no exterior para dentro do território das potências; ou “nearshoring”, quando as plantas são instaladas em países próximos.

É nisso que o governo Lula defende encaixar a Ceitec.

O governo fala em 45 patentes criadas, mas poucos projetos vingaram de fato. Houve desenvolvimento por exemplo de chips de passaportes, mas não foram comprados pela Casa da Moeda, o que rendeu críticas de que nem o governo se interessava pelo produto da empresa.

Em 2020, a companhia foi incluída no programa de privatizações do governo Jair Bolsonaro (PL). Sem interessados, a gestão tentou liquidar a empresa. Mas o processo foi suspenso pelo Tribunal de Contas da União, que apontou que a liquidação poderia custar R$ 140 milhões (nas estimativas da estatal).

A dificuldade maior de fechar a fábrica seria a chamada sala limpa, ambiente ultracontrolado para evitar contaminação externa dos chips, considerada um diferencial da empresa. Só a manutenção das instalações paradas custava cerca de R$ 25 milhões por ano, segundo o processo.

O fechamento, no entanto, demandava serviço especializado de descontaminação, para evitar o risco de acidentes ambientais com gases tóxicos, que custaria R$ 111,9 milhões.

Enquanto a empresa estava parada, perdeu mão de obra especializada para companhias de Taiwan, Reino Unido e Estados Unidos, segundo funcionários da companhia.

Para evitar incorrer nos mesmos erros, a ideia agora é incluir o material produzido ali nos planos de compra do governo, diz Henrique Miguel, diretor do Departamento de Ciência, Tecnologia e Inovação Digital do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Inicialmente, a empresa deve atuar em projetos de transição energética, com chips da área de potência, que fazem o controle de baterias e podem tornar carregadores mais eficientes –de celular a veículos elétricos.

Miguel reconhece que a Ceitec não tem pretensão de concorrer com gigantes estrangeiras do setor, mas pode produzir e desenvolver novas tecnologias para aplicações do dia a dia. Para isso, a ideia é religar os motores da fábrica até o fim do primeiro semestre do ano que vem, com a fabricação de tecnologias mais simples, e retomar de forma completa as operações em 2026 ou 2027, disse a nova direção à Folha.

Com meta de alcançar 7% do mercado latino-americano até 2027, o governo fala em investimentos de R$ 500 milhões nos próximos quatro anos, mesmo com os prejuízos históricos da companhia.

“Sem a presença do governo, nenhum país do mundo consegue manter uma indústria de semicondutores que exige uma complexidade muito elevada, não só em recursos humanos, mas em investimentos em equipamentos e instalações”, diz o novo presidente da companhia, Augusto Gadelha.

O Chips and Science Act dos EUA, aprovado no ano passado, é o principal elemento utilizado pelos defensores de um investimento estatal no setor. A lei prevê a injeção de US$ 52,7 bilhões (R$ 259 bi) no setor, entre pesquisa, desenvolvimento, fabricação (que ficará com 70% do montante) e formação de mão de obra.

O governo justificou o investimento como uma necessidade de “vencer a corrida do século 21”, falou em segurança nacional e disse ser necessário para “conter a China”.

Com o estímulo, o setor privado anunciou investimentos que somam US$ 210 bilhões (R$ 1 trilhão) no país, segundo dados da SIA (Associação das Indústrias de Semicondutores dos EUA), em fábricas em 22 estados americanos –nenhuma dessas empresas, no entanto, é estatal.

Fabrizio Panzini, diretor de relações governamentais da Amcham Brasil (Câmara Americana de Comércio no país), afirma que, confirmado o investimento bilionário na indústria americana, “a demanda vai transbordar para fora dos EUA”, e o Brasil pode se beneficiar.

“A gente tem indústria, tem matéria-prima, o que é um diferencial em relação a outros países, os investimentos globais estão aumentando e os EUA têm oito das quinze maiores empresas globais”, diz.

Ele defende que o Brasil precisa celebrar uma parceria com os EUA em cadeias de fornecimento, que reúna os setores público e privado, a exemplo do que os americanos fizeram com outros países como Austrália, Índia e Japão.

Autoridades americanas têm discutido o tema com o governo e empresas brasileiras, de forma mais geral, a respeito da cadeia de suprimentos, ou de forma mais específica, como quando o vice-presidente Geraldo Alckmin tratou de investimentos em semicondutores com a secretária americana de Comércio, Gina Raimondo, no começo do ano.

Outros países também querem se aproximar dos americanos. A TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing), uma das líderes no setor, planeja abrir uma fábrica no Arizona.

O investimento, no entanto, já foi adiado uma série de vezes –a empresa fala em falta de mão de obra qualificada, e sindicatos americanos a acusam de privilegiar trabalhadores estrangeiros com salários baixos nas contratações.

A China também está de olho no mercado brasileiro e o governo chegou a assinar parceria com Pequim na viagem de Lula ao país em abril, mas não há previsão de investimento chinês na Ceitec, segundo os membros do governo ouvidos pela reportagem.

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