SYLVIA COLOMBO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Milhares de argentinos foram às ruas nesta segunda-feira (24) pelo Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça , quando se lembram os mais de 20 mil desaparecidos do regime militar, iniciado em 24 de março de 1976. A principal manifestação, em Buenos Aires, tomou a praça de Maio, histórico local de resistência civil contra a ditadura. Mas os atos não se restringem às grandes cidades e se espalham pelo país. Na pequena Gualeguaychú, na fronteira com o Uruguai e a quase três horas de carro de Buenos Aires, Hugo Angerosa, 73, participou da marcha, como faz todo ano, com a demanda de esclarecimento sobre o que ocorreu com seu irmão, Daniel, e sua irmã, “Blanquita”, desaparecidos durante a ditadura.
“Daniel não tinha atuação política, estava em Santa Fé, onde cursava medicina. Já Blanquita era da Juventude Montonera [grupo guerrilheiro], participava das reuniões na cidade”, conta Angerosa à Folha.
O número de desaparecidos na Argentina, já objeto de questionamentos nos principais centros urbanos, é ainda mais incerto no interior.
“Éramos seis irmãos, quatro homens e duas mulheres. Os que mais militavam na política eram Daniel e Blanca, que era a mais nova. Nosso calvário começou antes do golpe, no dia 18 de fevereiro de 1976 [durante o governo civil de Isabel Perón, que, com o esquadrão apelidado de Triple A, já reprimia os chamados “subversivos”]”, lembra Angerosa.
“Bem tarde da noite, meus pais e alguns vizinhos estavam tomando um ar fresco na calçada e eu estava jantando, quando, de repente, um Fiat 128 entrou na contramão em alta velocidade e desceram alguns uniformizados do Exército e da polícia. Agarraram todos e os empurraram para dentro de casa, aos gritos. Perguntaram onde eu dormia e começaram a revistar meu quarto, reviraram tudo; também subiram nos telhados. Estavam procurando coisas do Daniel.”
Segundo Angerosa, um dos agentes disse a Cristina, esposa de Daniel, que no dia anterior ele havia sido detido pela polícia em Santa Fé, para onde planejava se mudar com a família – recém-formado em medicina – para fazer especialização em gastroenterologia. Cristina estava com o filho de quatro meses nos braços, que não parou de chorar durante toda a infrutífera operação de busca.
A partir daí, os Angerosa-Ingold, principalmente Hugo e sua mãe, começaram a percorrer quartéis, delegacias e tribunais, recorrendo a todos os contatos possíveis para descobrir onde estava Daniel.
“Sabemos que o mais provável é que tenham sido mortos, mas vamos sair todos os anos e buscar todos os anos, não nos resta outra alternativa. Tenho um sobrinho, filho de Blanquita, que nasceu no cativeiro – teria hoje 46 anos. Não vamos descansar enquanto não o encontrarmos”, disse Angerosa.
Ele mesmo foi sequestrado em 30 de setembro daquele 1976, para “informar sobre os irmãos”. Disse não ter falado nada. Passou alguns dias sofrendo tortura, até que foi libertado. “Eu não tinha atuação política, trabalhava numa pequena veterinária, mas eles queriam informações sobre os amigos dos meus irmãos, queriam telefones, contatos, e eu não tinha nada.” Nesse dia, porém, ouviu de um sargento as palavras que jamais esqueceu e que ainda hoje pensa que podem ser mentira: “Seu irmão, de Santa Fé, você não vai ver nunca mais.”
Angerosa dizia aos interrogadores que o irmão não era da luta armada e que havia entrado na militância para prestar ajuda médica nos bairros mais pobres. Foi levado a um centro clandestino em Gualeguaychú, mas os interrogatórios não levaram a nada. Foi solto uma semana depois. “Vi coisas horríveis, ouvia os gritos dos torturados a noite toda, as banheiras onde levavam choques elétricos. Fiquei lá sete dias.”
Sua irmã, a quem chamavam de Blanquita, foi levada para o centro clandestino de El Vesubio, em La Matanza, onde deu à luz um menino, segundo relatos de companheiras.
Angerosa não se anima a acreditar em que os irmãos possam estar vivos. Mas seu sobrinho, a quem chamam de Pedro, sim. “Todos os nossos dados de DNA estão no laboratório das Avós da Praça de Maio, e vamos seguir saindo, ano após ano, até sabermos mais sobre ele. Também queremos os vestígios de nossos irmãos -eles merecem uma sepultura. O país também merece saber o que ocorreu com todos eles.”