Chefe da Igreja Ortodoxa Russa culpa paradas LGBTQIA+ para defender guerra na Ucrânia

Religioso lamentou os esforços para "destruir o que existe no Donbass", em referência à região do leste ucraniano disputada por separatistas

Folhapress Folhapress -
Chefe da Igreja Ortodoxa Russa culpa paradas LGBTQIA+ para defender guerra na Ucrânia
Patriarca Filaret, líder da Igreja Ortodoxa Ucraniana (Foto: Reprodução/ Facebook)

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRES) – A invasão russa na Ucrânia talvez nem precisasse acontecer não fossem valores liberais do Ocidente, em particular paradas do orgulho LGBTQIA+, que pipocam em países guiados por tamanha torpeza de espírito. É o que deu a entender, em sermão no domingo (6), o chefe da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo 1°.

Amigo de Vladimir Putin, o religioso lamentou os esforços para “destruir o que existe no Donbass”, em referência à região do leste ucraniano disputada por separatistas pró-Rússia que foram reconhecidos por Moscou como independentes. Pois ali, segundo Cirilo, haveria “uma rejeição fundamental” a essa barafunda moral ofertada “por aqueles que clamam pelo poder mundial”.

Daí a birra com os atos LGBTQIA+. “Para se juntar ao clube desses países, você precisa fazer uma parada do orgulho gay”, disse o patriarca na data conhecida por igrejas ortodoxas como o Domingo do Perdão, que antecede a Quaresma. Um dia para pedir perdão uns aos outros por ofensas cometidas.

Em suma: o líder espiritual vislumbra uma batalha entre o bem e o mal, na qual caberia à Rússia proteger a Ucrânia daqueles que tentam perverter Kiev.

“Se o bizarro sermão de Cirilo ainda surpreende, é hora de aprender história”, sugeriu Katherine Kelaides, historiadora especializada nos ortodoxos contemporâneos, em artigo publicado pela revista Religion Dispatches. O tom do patriarca chocou um total de zero pessoa familiarizada com o personagem.

Nos últimos anos, Cirilo, 75, e Putin, 69, se empenharam em posicionar a Igreja Russa -e por extensão seu país-sede-, como capitães da direita religiosa global, segundo Kelaidis. Uma trincheira ideológica contra causas tidas como progressistas demais para o gosto do Kremlin.

O atual conflito seria mais um capítulo, até aqui o mais tenso, dessa narrativa. “Cirilo apoiou a guerra, apesar de alguns apelos vagos à paz”, diz a especialista à Folha. “Ele reafirmou a fala de Putin de que a Ucrânia é, por direito, terra russa. Essa também é sua reivindicação eclesiástica.”

Foi nesse contexto que o religioso argumentou que alguns países -leia-se o Ocidente- forçam outros a realizar paradas de diversidade sexual como um “teste de lealdade”.

O patriarca é leal ao ex-agente da KGB e, em 2012, apoiou publicamente sua candidatura presidencial. Naquele ano, a banda feminista Pussy Riot protestou com uma “oração punk” na principal catedral moscovita. A prisão de integrantes do conjunto virou símbolo da paulatina repressão a dissidentes do governo russo.

“O diabo riu de nós”, disse o religioso após o grupo cantar a música que, em português, teria como título “Virgem Maria, Mãe de Deus, Expulse Putin”, isso a menos de duas semanas da eleição. Ele não quis saber, na ocasião, de súplicas por clemência vindas até mesmo de ortodoxos, que respondem por cerca de metade da população russa.

Não havia por que “minimizar esse sacrilégio”, declarou.

Como Putin, Cirilo é de São Petersburgo, conhecida por Leningrado nos tempos de União Soviética. Com respaldo do autocrata, advoga pela moralização da sociedade, numa campanha a favor da educação cristã nas escolas e contra o aborto e a diversidade sexual.

Seguindo os passos do pai, um clérigo, ele foi ordenado ainda na era soviética. Em 2009, assumiu a cabeceira da hierarquia eclesiástica local. A proximidade com Putin faz parte do esforço para trazer a Igreja Ortodoxa “de volta ao centro do poder estatal russo”, de acordo com Kelaidis.

Pelo bem da aliança, a dupla fez circular um boato de que o pai de Cirilo batizou um Putin criança, em 1952. “Se isso soa esquisito, é algo típico da Rússia Imperial”, afirma a historiadora. Eram corriqueiros rumores da mesma natureza envolvendo imperadores e patriarcas.

Ao longo dos anos, um suposto gosto de Cirilo por artigos de luxo rendeu reportagens mundo afora.

A instituição chegou a se desculpar após blogueiros conterrâneos viralizarem uma foto de 2009 em que o patriarca aparece com um relógio de ouro Breguet, na época avaliado em 30 mil euros (o que hoje daria R$ 167 mil). Ou melhor, o que dá para ver no retrato é o reflexo do relógio -alguém apagou digitalmente o item, mas esqueceu de remover a imagem espelhada sobre uma mesa de madeira.

Antes do pedido oficial de desculpas, o próprio patriarca havia tentado emplacar, em entrevista a um jornalista amigável do Kremlin, uma outra tese. Um desafeto teria usado o Photoshop para inserir em seu pulso aquele Breguet, certa vez descrito pela grife como um “sine qua non de qualquer representação da aristocracia, da burguesia ou, simplesmente, de uma vida de luxo e elegância”.

Rumores sobre uma vida de ostentação, que incluiria um iate privado e viagens em jato particular, rondam há tempos o patriarca. Nunca, contudo, foram provados. Deletar o relógio pomposo de sua biografia, por outro lado, provou-se missão mais árdua.

Cirilo já usou o mesmo adorno num encontro com Putin, então primeiro-ministro, em 2012. Não perdeu tempo em afagar o aliado, um “milagre de Deus” que teria livrado a Rússia de uma “terrível crise sistêmica”. O russo que dez anos depois orquestraria a guerra da Ucrânia voltou à Presidência naquele mesmo ano, e de lá nunca mais saiu -uma reforma aprovada há dois anos pode deixá-lo no poder por mais 14 anos. Ele já havia chefiado o país de 2000 a 2008.

Cirilo visitou o Brasil em 2016, quando foi recepcionado pela presidente da vez, Dilma Rousseff (PT), no Palácio da Alvorada. Defendeu, ali, missões humanitárias em áreas de conflitos religiosos.

Dias antes, ele teve uma reunião histórica com o papa Francisco, em Cuba. Os dois lados se declaram católicos, mas ortodoxos não reconhecem a autoridade papal desde o cisma do Oriente com Roma, que rachou o cristianismo em 1054. Líderes das duas igrejas passaram quase um milênio sem se encontrar.

Nessa peleja militar com bafo de Terceira Guerra Mundial, estão mais uma vez em lados opostos. No domingo em que Cirilo 1° associou paradas LGBTQIA+ à ruína ucraniana, o cabeça do Vaticano condenou as investidas bélicas de Moscou. “Na Ucrânia correm rios de sangue e lágrimas”, disse o pontífice. A guerra também é santa.

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