Missão de ajuda ao Haiti sofre novo revés em visita de líder do Quênia aos EUA
Ruto e Biden disseram que estão ansiosos para enviar os primeiros homens à nação do Caribe que vive uma grave crise humanitária
MAYARA PAIXÃO E FERNANDA PERRIN
BUENOS AIRES, ARGENTINA E WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Foi grande a expectativa de que uma visita do presidente do Quênia, William Ruto, à Casa Branca para se reunir com Joe Biden nesta quinta-feira (23) viesse acompanhada de um anúncio para destravar de vez a missão multinacional de ajuda à polícia do Haiti, comandada pelos dois países. Mas a realidade se impôs.
Ruto e Biden disseram que estão ansiosos para enviar os primeiros homens à nação do Caribe que vive uma grave crise humanitária, com sua capital dominada por gangues armadas. Mas não anunciaram o envio de nenhum destacamento.
Amplia-se assim o atraso para o início da missão, aprovada em outubro pelo Conselho de Segurança da ONU, à época presidido rotativamente pelo Brasil. Prevista para durar inicialmente um ano a partir da data de sua aprovação, ela já tem sete meses de atraso.
Também deverá ser reavaliada após nove meses daquele prazo. Ou seja, em julho.
Envolvidos no assunto explicam que o governo Biden planejava assim que possível auxiliar no envio dos primeiros policiais para, assim, dar argumentos para o inescapável debate sobre a renovação da missão em breve. China e Rússia, dois dos membros permanentes do Conselho de Segurança, são os pontos de tensão nessa matéria.
A diplomacia americana chegou a verbalizar em abril que os primeiros contingentes seriam enviados neste mês de maio. Ao todo, seriam ao menos mil policiais do Quênia e outros 1.500 do Benin e de nações do Caribe, como o arquipélago das Bahamas e a Jamaica.
Até que no início desta semana um grupo de menos de uma dezena de autoridades quenianas desembarcou em Porto Príncipe para fazer uma avaliação do terreno. Foi uma visão desoladora. Não havia a menor estrutura para receber os policiais, faltando desde carros para transportá-los até rádios para que se comunicassem.
O êxito desse pequeno grupo, porém, foi definir as chamadas “regras de engajamento”, ou seja, como se dará a colaboração dos quenianos com a Polícia Nacional Haitiana e quais seriam as consequências se, por exemplo, um agente do país africano matasse um cidadão do Haiti.
Mesmo para dar um verniz de maior confiança ao Quênia de William Ruto nesta missão no Haiti, Biden anunciou nesta quinta-feira que o país será o primeiro da África Subsaariana a se tornar um aliado preferencial extra-Otan (aliança militar ocidental).
Até aqui 18 países eram designados assim, entre eles Brasil e Argentina. A designação cabe a países que não são membros da aliança militar, mas que são considerados aliados estratégicos militares dos EUA.
O presidente também afirmou que atuará junto ao Congresso para liberar ao Quênia verba para investimentos em ciência e na produção de chips, fator importante na Guerra Fria 2.0 contra a China.
Até aqui a ideia é que os primeiros policiais enviados possam atuar no chamado policiamento estático, como nos arredores do aeroporto e nos principais portos haitianos, para permitir o fluxo de mercadorias, hoje parado e um agravante para a fome, além de destruir o modelo de negócio da gangues: roubos, extorsões e sequestros.
Mas já começa a haver temor nas cidades ao redor de Porto Príncipe de que a presença da missão externa somente na capital do país possa fazer com que a violência vaze para municípios vizinhos, até aqui relativamente a salvo da violência nesses níveis.
Na declaração conjunta divulgada por Quênia e EUA, Washington promete fornecer mais de US$ 300 milhões “em assistência e apoio em espécie à missão”, sem especificar quanto seria voltado ao fundo e quanto aplicado diretamente em equipamentos e infraestrutura –americanos afirmam que a contribuição financeira não é tão grande porque já estariam fornecendo apoio direto, como a construção de uma base no Haiti para receber esses policiais.
É um tema complicado. Alguns atores de outros países envolvidos nesse debate dizem que é pouco transparente o montante disponível no fundo criado para a missão pelos EUA e que muitas das possíveis ajudas internacionais estão sendo travadas por temas orçamentários.
É o caso do próprio Brasil, que já debateu diferentes possíveis maneiras de colaborar com a missão, ainda que desde o princípio tenha negado o envio de homens, mas até aqui não encontrou saída.
Brasília ainda cogita enviar equipamento de proteção individual, blindados leves e armas, como solicitado pelos EUA, mas somente se tiver direito a reembolso com o dinheiro do fundo.
A diplomacia brasileira também não descarta enviar um militar de alta patente para ajudar na missão, mas para aconselhamento ou gestão, não para ações em campo. Tudo segue travado.
Pesou também a tragédia no Rio Grande do Sul, que tem mobilizado os recursos do Estado brasileiro e tornado mais sensível qualquer debate sobre verba para ajudar outros países.
Também nesta semana a secretária-geral do Itamaraty, Maria Laura da Rocha, esteve em Washington, e um dos temas abordados foi o país caribenho. Mas a conversa foi tímida com os americanos, com o Brasil reiterando sua posição de que a ajuda deve ser securitária e na área de desenvolvimento. Nada sobre a ajuda brasileira foi cravado.
A visita de Ruto é a primeira bilateral de um presidente africano à Casa Branca desde 2008 e a única de um país que não faz parte do G20 durante o governo Biden. Diante das críticas sobre um abandono da África pela política externa americana, o encontro com o líder queniano tem sido ressaltado como um escudo contra essa visão.
Ainda assim, Biden deve ser o primeiro presidente democrata desde Lyndon Johnson (1963-1969) a não visitar o continente em seu mandato.