Biblioteca comunitária em Londres arquiva história do movimento feminista e LGBTQIA+
A Feminist Library (biblioteca feminista, em inglês), fundada em 1975 por acadêmicas britânicas, reúne mais de 7.000 livros e mais de 2.000 periódicos e zines


ANGELA BOLDRINI
Escondida em uma rua residencial de Londres está um dos maiores arquivos sobre a história dos movimentos feminista e LGBTQIA+ do mundo. A Feminist Library (biblioteca feminista, em inglês), fundada em 1975 por acadêmicas britânicas, reúne mais de 7.000 livros e mais de 2.000 periódicos e zines, incluindo revistas, jornais e panfletos contando a história das lutas de emancipação feminina desde a segunda metade do século 20.
“A maior parte da nossa coleção é dos anos 1970 e 1980”, conta Aislinn Evans, 24, coordenadora de comunicação do acervo.
O foco tem razões claras: a biblioteca foi fundada por ativistas do então recém-fundado “women’s liberation movement” (movimento de liberação das mulheres), um renascimento do feminismo organizado, que não atingia proporções tão grandes desde a luta pelo sufrágio, nos anos 1910.
Com uma história de instabilidade financeira e quase totalmente dependente de voluntariado, a biblioteca sobrevive há quase 50 anos dando acesso gratuito a materiais antigos e muitas vezes raros, valiosos para pesquisadores e ativistas.
Na coleção, por exemplo, é possível encontrar exemplares da Sappho, primeira revista lésbica do Reino Unido, publicada entre 1964 e 1971. Na lista de periódicos, também estão materiais em espanhol, árabe, coreano e até português brasileiro.
“Se esses documentos não fossem arquivados e cuidados por alguém, essa história seria perdida”, diz Evans. “Eles são relevantes porque contam a história do movimento de mulheres, e é importante que pesquisadores saibam que existe um espaço onde eles podem vir para seus estudos.”
Ao contrário de outras bibliotecas, como a Women’s Library, maior e mais antiga biblioteca sobre mulheres do país, abrigada pela London School of Economics and Political Science, a Feminist Library depende exclusivamente de doações de membros e atua de forma comunitária.
Por isso, inclusive, a instituição passa frequentemente por dificuldades financeiras. A biblioteca se mudou para o atual endereço, no sul de Londres, em 2019, quando foi desalojada do espaço onde permaneceu por 30 anos por constantes subidas de aluguel. Para manter o acervo, as voluntárias responsáveis pelo arquivo arrecadaram mais de 30 mil libras (R$ 218 mil, pela cotação atual).
No espaço, cinco salas apertadas dentro de um centro local cujo nome homenageia a abolicionista e sufragista negra americana Sojourner Truth, a biblioteca também realiza eventos e rodas de conversa -como um encontro semanal de lésbicas “butch”, um clube de leitura em espanhol e até um espaço para mães e bebês, descontinuado temporariamente.
A gratuidade do acesso ao arquivo é um dos pontos centrais da política da Feminist Library. Ao contrário de outras bibliotecas, onde é preciso pagar uma taxa de associação, ou ser aluno da universidade para ter acesso, os materiais do centro comunitário podem ser solicitados por qualquer um. É por isso, conta Evans, que parte do acervo ainda não foi digitalizada.
“Já nos ofereceram para digitalizar tudo para a biblioteca de graça, mas a contrapartida era cobrarem pelo acesso, e não é isso que queremos”, afirma. “A ideia é que esse seja um espaço radical, diferente de espaços puramente acadêmicos, em que o ativismo esteja conectado com o arquivo.”
A proposta faz com que até o sistema de organização seja diferente. Nada de humanidades, ciência, artes. O acervo usa uma categorização desenvolvida pela bibliotecária Wendy Davis em 1978, com seções dedicadas, por exemplo, a “crimes contra as mulheres” e “mulheres viajantes”.
Não que isso não gere discussões. Em 2015, uma reportagem da revista “The New Statesman” conta que voluntárias discordavam sobre o lugar para os livros sobre prostituição, repetidamente mudando os volumes da categoria “trabalho” para a de “crimes contra mulheres”.
Recentemente, outra disputa apareceu. “Nós decidimos nos tornar um espaço totalmente seguro para pessoas trans”, diz Evans. A decisão espantou parte dos voluntários antigos, e gerou um debate sobre o que fazer com materiais considerados transfóbicos. “Estamos avaliando o que deles tem valor histórico e vale a pena manter.”
Em um dia cheio, a biblioteca chega a receber cerca de 20 pessoas, número capaz de gerar congestionamento na pequena sala do centro comunitário. Numa quarta-feira de outubro, a única visitante que cruzou com a reportagem foi a estudante Clara Upward, 24, explorava o acervo pela primeira vez.
“Eu estudo educação e quis conhecer a coleção porque é um conceito muito interessante, um lugar onde você está livre do ‘paywall’ das universidades e pode acessar documentos históricos”, conta. “É importante que essa história das mulheres esteja preservada e que alguém esteja cuidando disso.”