Antropóloga vê pacto masculino em audiência de Mariana Ferrer

”Todas nós mulheres nos sentimos naquele lugar, mesmo que não tenha sido estuprada”, avalia

Folhapress Folhapress -
Antropóloga vê pacto masculino em audiência de Mariana Ferrer

Paula Sperb, do RS – Pesquisadora da violência contra mulheres na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a antropóloga Miriam Pillar Grossi acredita que as cenas da audiência de julgamento do caso do estupro supostamente sofrido pela jovem Mariana Ferrer mostram um “pacto masculino”.

Nas cenas divulgadas em vídeo, Ferrer chega pedir ao juiz para ser respeitada após ser agredida pelo advogado do réu. Os demais homens participantes da sessão, o juiz, promotor e defensor, parecem silenciar diante do ataque sofrido. O Ministério Público de Santa Catarina afirma que o vídeo foi editado sem as intervenções do promotor, o que é negado pelo Intercept Brasil, que publicou a gravação.

“O estupro não é sexual, é exercício de poder”, diz Grossi, que também é coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da UFSC. “Homens que sentiam que sempre podiam fazer o que queriam se sentem muito ameaçados pelas lutas sociais, lutas que têm dado migalhas de igualdade social a mulheres”, analisa a professora.

PERGUNTA – Por que não é raro que homens que cometem violência sexual contra mulheres fiquem impunes?

MIRIAM PILLAR GROSSI – É o que a gente chama de violência estrutural do Estado. No caso da Mariana Ferrer, a vítima foi tratada como ré, sem nenhuma possibilidade de ser escutada e mais uma vez violentada. Nos choca quando a instância jurídica, que representa o Estado e deveria produzir justiça, acaba produzindo violência.

O movimento feminista vem apontado isso desde a década de 1970. Felizmente, já avançamos bastante no aparato de leis no Brasil com a lei Maria da Penha, em 2006, e as delegacias de atendimento especializado, em 1985. É impressionante como são vários casos em pauta ao mesmo tempo. São muitos os casos vindo à tona. Um dos casos paradigmáticos é o do Robinho.

P. – A senhora acompanhou o caso dos quatro jogadores do Grêmio condenados na Suíça, em 1989, por um estupro coletivo de uma garota de 13 anos. Qual a diferença com o caso do Robinho, condenado na Itália?

MG – Há 33 anos, em 1987, escrevi um artigo no jornal feminista Mulherio [em dupla com a pesquisadora Carmen Rial]. Eles foram tratados como heróis na chegada no aeroporto como se tivessem lavado a honra do gaúcho. O mesmo fez a imprensa esportiva na época. Agora, no caso do Robinho, há uma revolta pública que atinge também o jornalismo esportivo, que considera o fato um crime. Houve uma mudança real. Ele afirmou que “infelizmente existem as feministas”. É por causa do feminismo que as mulheres não aceitam mais esse tipo de violência.

P. – De modo geral, o que explica um estupro?

MG – O estupro não é sexual, é exercício de poder. O que a gente vê no vídeo da audiência da Mariana Ferrer é uma forma de poder extremo. Eu mesma tive que parar [a exibição] porque foi se tornando insuportável assistir. Todas nós mulheres nos sentimos naquele lugar, mesmo que não tenha sido estuprada. Aquela situação de quatro homens, um atacando a Mariana e os outros em silêncio, cúmplices, todas nós já vivemos isso.

P. – Por que essa cumplicidade ocorre?

MG – Eu já vivi isso em vária situações. Em uma situação onde tu és a única mulher, os homens fazem uma aliança de poder mesmo que não concordem. Dificilmente um deles se posiciona e vai dizer que é um absurdo, que não pode fazer isso.

P. – A senhora acredita que na audiência os homens abriram mão dos papéis institucionais em favor dessa aliança de poder?

MG – Os papéis que cada um deveria cumprir no julgamento deixaram de existir a partir de um pacto masculino de homens brancos que se consideram de elite, já que o Judiciário é uma elite na nossa sociedade. É também um pacto narcísico. Ele se veem, mesmo que inconscientemente, naquela situação: estão pensando que aquele estuprador, filho de empresário, poderia ser seu filho. Não digo que isso é pensado, mas também estão protegendo seus filhos, seus lugares. É algo como “quem tem poder somos nós, te cala”. A audiência da Mariana apenas reproduziu algo que é feito há dezenas e dezenas de anos. A diferença é que tivemos acesso.

P. – Também em Florianópolis, o prefeito é acusado de estupro. Ele alega que relação foi consensual. Os supostos estupros teriam ocorrido dentro de estruturas da prefeitura, mas os vereadores rejeitaram as denúncia por quebra de decoro. É um caso de “pacto masculino”?

MG – O surpreendente no caso do prefeito é que parece que teria aumentado sua a popularidade porque mostra que ele é um macho. Com a ascensão da extrema direita – no Brasil e em países como Estados Unidos e Polônia – a lógica é a da masculinidade. Homens que sentiam que sempre podiam fazer o que queriam se sentem muito ameaçados pelas lutas sociais, lutas que têm dado migalhas de igualdade social a mulheres. Mas mesmo com migalhas, eles se sentem muito ameaçados. A forma de reagir a essa ameaça é a violência. Se o presidente pode dizer que não estupraria uma deputada porque ela não merecia, por ser feia, por que os homens não podem dizer algo parecido? Eles se sentem legitimados por quem está no poder.

P. – A governadora interina de Santa Catarina, Daniela Reinehr (em partido), evitou responder se repudiava o nazismo ao ser questionada sobre o tema, uma vez que seu pai é simpatizante do nazismo. Em um primeiro momento, antes de finalmente se posicionar, ela alegou seu “papel como filha” em respeito ao pai. O patriarcalismo afeta também a política?

MG – Como feminista, me alegra ter uma mulher em lugar de poder, mesmo que seja uma conservadora. No entanto, este caso é lamentável. Primeiramente, ela falou a partir de suas relações, com esse compromisso [com o pai] primeiro. Também é estratégico porque na atual política, as mulheres, como a ministra Damares Alves, estão aparentemente no poder, mas servem para garantir a estabilidade das relações de dominação. Quando a governadora se coloca como filha, ela agrada o eleitorado conservador que pensa “ela não quer o poder, ela respeita a família, a hierarquia”. Mas é nestas mesmas famílias onde muitas vezes as mulheres são violentadas e estupradas.

MIRIAM PILLAR GROSSI

Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e co-coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS). Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Doutora em Antropologia pela Université Paris Descartes, Paris 5.

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