‘É uma guerra em versão de jogos infantis’, diz psicóloga sobre a série ‘Round 6’
Jogos aos quais os participantes são submetidos trazem uma particularidade -são brincadeiras tipicamente de crianças
A recém-lançada “Round 6”, série sul-coreana da Netflix, chamou a atenção por tratar de temas como capitalismo selvagem, totalitarismo igualitário e desigualdade social.
Com a marca de estreia mais vista do serviço de streaming, a narrativa acompanha 456 pessoas endividadas que entram em um desafio no qual o vencedor ganhará 46 bilhões de wons (aproximadamente R$ 210 milhões). No entanto, quando alguém perde uma partida dos jogos, o destino é a morte. Ao término, só terá um participante vivo, que também será o vencedor do prêmio.
Os jogos aos quais os participantes são submetidos trazem uma particularidade -são brincadeiras tipicamente de crianças, como cabo de guerra. A partir daí, discussões surgiram sobre qual o impacto de pôr momentos de diversão infantil em contextos macabros e de violência extrema.
A questão se tornou mais crítica quando foram relatados casos de crianças que já assistiram ao programa e reproduziram o que viram na tela, mesmo que a classificação etária seja de 16 anos.
Belinda Mandelbaum, professora de psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do Lefam (Laboratório de Estudos da Família), afirma que a série traz “uma perversão da brincadeira infantil, porque ela é retirada de seu contexto habitual […] e se transforma em uma situação de absoluta ameaça e violência”.
Para ela, os jogos infantis, como cabo de guerra, são essenciais na estimulação de elementos essenciais para a vida de uma pessoa, como trabalho em equipe e competição saudável. No caso da série, isso é desvirtuado por conta da adição da violência, da possibilidade de morte iminente e da extrema necessidade financeira dos personagens.
Mandelbaum também afirma que existem elementos de violência nas crianças, mas é importante associá-los a aspectos saudáveis e construtivos durante a infância para não acarretar em problemas do seu desenvolvimento.
“Eu posso ter impulsos mais agressivos, mas posso expressar isso escrevendo uma história, pintando um quadro ou me interessando por temáticas de guerra, por exemplo”, afirma ao se referir a crianças.
Os jogos infantis também compõem essas formas positivas de lidar com a violência durante os primeiros anos porque eles têm elementos como disputa e competição. No entanto, sempre existem regras para preservação dos limites das pessoas envolvidas nas brincadeiras, fazendo com que esses sejam momentos saudáveis aos menores.
No caso da série, isso não acontece. “Ou você ganha ou você simplesmente morre”, diz Mandelbaum.
Esse é outro ponto que a professora de psicologia chama atenção -o programa não trata a perda como algo normal. “A vida é sempre feita de ganhos e perdas e precisamos ensinar isso para as crianças. Mas [na série não]: ou você é um vencedor o tempo todo ou você é, literalmente, morto.”
Médico psiquiatra e coordenador do Setor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Santa Casa do Rio de Janeiro, Fábio Barbirato também mostra preocupação com “Round 6”. “[A série] é de uma agressividade atroz. E não é só de agressividade, tem questões de sexualidade também que crianças não estão preparadas para ver.”
O psiquiatra diz que não é possível mensurar os impactos exatos que o programa pode ter para crianças por ainda ser muito recente, mas cita pesquisas que comprovam que conteúdos e atitudes violentas estimulam o desenvolvimento de comportamentos agressivos para os mais jovens.
“Você tem milhões de estudos de desenvolvimento que mostram que crianças quando assistem a esses programas ficam mais propensas a perderem empatia”, diz.
A empatia é elencada pelo médico como muito importante de ser trabalhada na infância e adolescência porque é muito difícil que alguém a desenvolva quando já for adulto.
Para Marcelo de Vasconcellos, pesquisador do CDTS (Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde) da Fiocruz, não é possível dizer que mídias, como séries e jogos, tenham impacto na formação de um comportamento violento, “mesmo porque a violência é um fenômeno pluricausal”.
“Pesquisas mostram que não há uma influência de mídia violenta em comportamento violento. O que vemos é que pessoas com comportamento violento tendem a gostar [desse tipo de conteúdo], mas isso parece ser muito mais uma correlação do que uma causa”, afirma.
Exemplos de jovens que imitam comportamentos vistos em programas de entretenimento, como o caso da própria “Round 6”, também “não implica que [a criança] está querendo fazer aquilo para valer”, afirma o pesquisador.
“As crianças conseguem fazer essa migração da fantasia para o real de forma muito transparente, algo que pode assustar até os pais”, diz.
Mandelbaum também enxerga problemas em relação à questão econômica que a série aborda. Ela afirma que grande parte dos jovens acompanham a vida financeira da família e que isso é importante para seu desenvolvimento.
O problema é que a história envolve endividados que passam por necessidades financeiras e, por isso, aceitam participar desse desafio que pode acarretar a própria morte.
Os pequenos, ao consumirem conteúdos desse tipo, podem pensar que é normal se submeter a situações extremas por necessidades financeiras, explica a psicóloga.
“A criança está exposta a essa ideologia: um mundo em que a sociedade não se preocupa mais com seus desempregados, seus endividados, não há políticas públicas, não há proteção”, afirma.
Por outro lado, Barbirato indica que esse aspecto é secundário porque menores ainda não têm tantas noções financeiras. “Uma criança de sete, oito, nove ou dez anos não vê esse [problema do] dinheiro”, diz.
A Netflix foi procurada para comentar sobre os efeitos que a série pode ter em jovens, mas não respondeu até a finalização da matéria.
Os dilemas envolvendo o conteúdo da série também se relacionam com o papel dos pais na preservação do que os filhos consomem. “A classificação indicativa do programa é de 16 anos então o ideal era que não tivesse crianças abaixo dessa idade assistindo”, afirma Vasconcellos.
O pesquisador diz que a indicação de idade não é uma censura, já que os pais têm liberdade de criação, mas “é uma tentativa de entregar [de forma equilibrada] o mais adequado para cada faixa etária”.
“Podemos ficar bem seguros [sobre a classificação indicativa] porque não tem só o consenso brasileiro, tem também o consenso internacional sobre [a idade adequada] para várias mídias”, explica.
Além disso, o monitoramento das atividades de crianças e adolescentes também é algo que os pais precisam fazer. “Tem coisas interessantes na internet para crianças, mas tudo isso depende de um acompanhamento”, afirma Mandelbaum.
Para ela, o uso excessivo do ambiente online pode impedir a participação em outras atividades educativas essenciais para o desenvolvimento infantil, como jogos, brincadeiras e interações com outras pessoas.
Outro ponto é o fato de que a internet facilita o acesso a conteúdos inadequados para os menores. Barbirato relata casos de jovens que, por meio da rede social Tik Tok, tiveram acesso a conteúdo suicida e de automutilação.
“Os pais têm que estar atentos aos que os filhos estão vendo e fazendo no telefone, na mídia ou no computador para poder dar limites a isso”, afirma.