Como a Alemanha cercou o Telegram e conseguiu banir contas por crime de ódio

Como acontece no Brasil, houve dificuldades dos órgãos federais para notificar os responsáveis pelo aplicativo, que tem sede em Dubai

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Como a Alemanha cercou o Telegram e conseguiu banir contas por crime de ódio
Aplicativo de mensagens Telegram (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

MICHELE OLIVEIRA
MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Quando a pandemia da Covid começou a bater níveis recordes de contaminação na Alemanha, no fim de novembro, um outro movimento despertou a atenção das autoridades alemãs –a radicalização de grupos contrários às medidas para a contenção do vírus e o uso do aplicativo Telegram para ameaçar políticos.

Envolvidos em disseminação de notícias falsas e incitação de crimes de ódio, cerca de 60 perfis acabaram bloqueados em fevereiro, após semanas de tentativas das autoridades do país em fazer com que o app cumprisse a legislação que combate conteúdo ilegal em redes sociais, uma das mais severas da Europa.

Como acontece no Brasil, houve dificuldades dos órgãos federais para notificar os responsáveis pelo aplicativo, que tem sede em Dubai (Emirados Árabes Unidos). Após pressão pública do novo governo, com aplicação de multas e ameaça do bloqueio da plataforma –o que no Brasil se concretizou, com a determinação do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes nesta sexta (18)–, as primeiras contas foram removidas.

“Desde o primeiro dia no cargo, trabalhei para que o Telegram cooperasse. Essa pressão está funcionando”, comentou a ministra do Interior, Nancy Faeser, a um jornal alemão.

Faeser assumiu o cargo em 8 de dezembro, no governo do novo premiê alemão, Olaf Scholz. À época, o país vivia uma alta de casos e mortes por Covid e, ao mesmo tempo, uma radicalização de grupos contrários às vacinas e às restrições impostas devido à crise sanitária. No começo de dezembro, dois membros do governo do estado da Saxônia estiveram entre os alvos.

A secretária da Saúde Petra Köpping recebeu em frente de casa um ato noturno de cerca de 30 pessoas, algumas com tochas com fogo. A suspeita é de que o ato tenha sido organizado pelo Telegram, no qual circularam mensagens de intimidação contra ela. Dias depois, Michael Kretschmer, governador da mesma região, foi alvo de um grupo que teria discutido planos de matá-lo, na sequência do anúncio de medidas anti-Covid. A partir do rastreamento de mensagens do Telegram, a polícia fez buscas nas casas de cinco membros do grupo, em Dresden e Heidenau, onde armas teriam sido encontradas.

Os casos acenderam um alerta que circulava havia meses entre especialistas: no Telegram, radicais publicavam livremente conteúdo ilegal, ferindo a legislação contra crimes de ódios e desinformação.

“A sociedade civil e os pesquisadores estavam, havia meses e até anos, apontando os riscos possíveis desses grandes grupos que atraíram extremistas. Mas o governo passou a focar mais esse problema quando as ameaças contra políticos se tornaram mais óbvias, públicas e diretas”, diz à Folha Julian Jaursch, do think tank SNV, sigla em alemão para Fundação Nova Responsabilidade, em Berlim.

O Telegram não é a rede social mais popular no país, mas está entre as que tiveram maior crescimento desde 2019.

Segundo levantamento publicado em janeiro pela agência federal que regula os serviços de telecomunicações do país, o aplicativo era utilizado por 16% dos alemães adeptos dos serviços de comunicação online, aumento de 6 pontos percentuais no período. Apesar de serem os mais usados, WhatsApp (93%) e Facebook Messenger (39%), da Meta, tiveram leve perda de usuários –6 pontos percentuais, juntos.

Ao menos três fatores explicam o fato de o Telegram ter se tornado um nicho para circulação de conteúdo extremista na Alemanha. Primeiro, a entrada em vigor, em janeiro de 2018, da Lei de Melhorias na Aplicação das Leis em Redes Sociais, chamada de NetzDG. Depois, o entendimento, apenas recentemente, de que o Telegram deveria se encaixar na legislação. Por fim, a moderação de conteúdo realizada pelas demais plataformas para coibir notícias falsas relacionadas à pandemia.

“Muitas das grandes plataformas cortaram e moderaram o conteúdo de desinformação contra o Covid-19 e contra extremistas. Algumas pessoas continuaram nessas redes e baixaram o tom, mas outras se mudaram para plataformas mais marginais. Foi o que aconteceu com o Telegram”, diz Jaursch.

O NetzDG, pacote de leis que estendeu ao ambiente online medidas que já se aplicavam no offline, tem entre suas regras a obrigatoriedade, a plataformas com mais de 2 milhões de usuários registrados no país, de manter um canal para recebimento de denúncias e, em casos em que o conteúdo é claramente ilegal, de removê-lo (ou bloquear o acesso a ele) no prazo de 24 horas após o recebimento da reclamação. Se a plataforma não cumprir as regras, pode ser multada em até 50 milhões de euros (R$ 277 milhões).

Como o NetzDG não se aplica a serviços de mensagens individuais, como WhatsApp ou emails, o alcance da legislação ao Telegram ficou em debate por meses, até que, no ano passado, o Ministério da Justiça entendeu que, devido à possibilidade de comunicação de uma pessoa com várias, em grupos ou em canais de transmissões, o aplicativo também deveria se encaixar nas leis das redes sociais.

A decisão foi acompanhada de duas multas, uma por não manter um canal para denúncias, outra por não ter um representante no país para o recebimento de solicitações das autoridades alemãs. E aí ficaram evidentes as dificuldades de estabelecer contato com os responsáveis pelo Telegram e fazê-los cumprir as regras –algo que só foi obtido há poucas semanas. No meio tempo, as autoridades subiram o tom.

A ministra Faeser chegou a dizer publicamente que, se o aplicativo não reagisse às medidas, poderia ser banido do país. Nos dias seguintes, segundo jornais locais, foram estabelecidos os primeiros contatos entre autoridades e responsáveis pelo app e o consequente bloqueio de 64 contas. Procurado, o Ministério do Interior não respondeu. A Polícia Federal disse que não poderia comentar ações em andamento.

O Telegram não respondeu às perguntas da reportagem, enviadas por email, sobre o bloqueio das contas alemãs. Em sua página de perguntas e respostas, a plataforma afirma, sobre a existência de conteúdo ilegal na rede, que todos os chats individuais ou em grupos “são privados entre seus participantes”, mas que os canais são públicos, e indica como denunciar conteúdo impróprio.

Ainda que os primeiros resultados tenham sido alcançados, com a remoção de contas com conteúdo ilegal, especialistas apontam os limites da ação. “Não dá para ficar nessa situação de caso a caso, não é uma boa abordagem. As autoridades devem melhorar os mecanismos em vigor para que as empresas possam se comprometer com as regras”, avalia Jaursch. “Se você tem uma empresa que não atua em conformidade com as leis ou não fala com reguladores e governos, o problema continua.”

Um caminho, segundo ele, é fazer com que a legislação de regulação das plataformas online ganhe escala internacional e possa ser aplicada no nível da União Europeia, algo que está já em discussão.

Desde dezembro de 2020, tramita no Parlamento Europeu proposta de Lei de Serviços Digitais da Comissão Europeia, que tem como principal meta criar um ambiente digital “seguro, em que os direitos fundamentais dos usuários sejam protegidos”. Um dos pontos é justamente o de estabelecer novos mecanismos de cooperação das plataformas com autoridades nacionais. A expectativa é de que o pacote, que precisa ser aprovado por todos os 27 países, possa entrar em vigor no próximo ano.

“Ter um regulador forte é um elemento chave. Com as leis no nível da UE, um mercado de 450 milhões de pessoas e instituições poderosas por trás, a pressão sobre as empresas ficará maior”, afirma Jaursch.

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