Ucraniana que sobreviveu em teatro de Mariupol conta como foi o ataque
"Senti muita dor, minhas pernas pareciam pedaços de carne, meu braço estava ferido. Achei que minha vida terminaria ali", relatou
(FOLHAPRESS) – Foi no dia 5 de março que Natalia, 54 (ela não quis revelar o sobrenome), ouviu a notícia de que as forças russas e ucranianas haviam acertado um cessar-fogo para que civis presos em porões e prédios de Mariupol pudessem deixar a cidade.
A população foi instruída a se juntar em pontos específicos, e os que viviam na região central como ela deveriam se encontrar no teatro de drama; de lá, seriam escoltados pelos militares. Uma explosão no centro fez com que o lugar que seria ponto de parada virasse abrigo, até ser alvo ele mesmo de um ataque, dias depois.
Natalia, hoje internada em um hospital de Zaporíjia, contou à reportagem como foram os dias em que esteve abrigada no teatro e os momentos que se seguiram à destruição do local. “Desde o primeiro dia, a região onde moramos foi muito bombardeada. Não havia nenhuma hora do dia em que não ouvíssemos bombas explodindo muito perto”, lembra, sobre o início do cerco a Mariupol. “Quando recebemos a mensagem de que poderíamos sair, o fizemos imediatamente.”
Naquele dia 5, ela então se dirigiu ao teatro com a mãe Viktoria, 86, a filha Ieva, 30, e o namorado dela, Volodimir, 28. A guerra mal havia começado, mas já havia muitos corpos não recolhidos, fazendo a cidade cheirar muito mal.
A família de Natalia encontrou no abrigo uma multidão de milhares de pessoas carregando apenas o que havia de importante em suas vidas. Tendo fugido às pressas de casas destruídas, muitas crianças vestiam pouca coisa ou estavam com a roupa molhada.
“Eu nasci na Rússia, minha mãe e meu pai são russos, tenho família em São Petersburgo. Pensávamos que os russos nos respeitariam.”
As horas se passaram, o número de pessoas no teatro só aumentava e, no meio da tarde, uma explosão foi sentida no centro de Mariupol -o som de um avião sobre a cidade fez com que muitas pessoas entrassem em pânico. “Sentimos um terremoto. Os militares saíram de carro, muitas pessoas fugiram de volta para os porões de onde tinham vindo e muitas outras entraram no teatro para buscar abrigo.”
Desse momento em diante, a cidade portuária que é considerada chave pelos russos para fazer uma ponte terrestre entre a Crimeia e as regiões de Donetsk e Lugansk, a leste, não teve mais uma hora de paz. Todos os dias e a qualquer hora muitas bombas eram lançadas contra os prédios, transformando Mariupol rapidamente em ruínas.
“Nos sentimos seguros no teatro, porque as paredes pareciam muito fortes e o teto, muito alto. Havia também um porão; fomos todos para dentro e não saíamos de lá para nada.”
Os ucranianos não tinham planejado abrigar milhares de pessoas ali, e a situação foi ficando cada vez mais complicada -mesmo que as pessoas fossem sempre gentis umas com as outras.
“Tínhamos pouca comida, voluntários nos traziam o que podiam. Não havia energia elétrica, não havia gás. Fazia muito frio, principalmente à noite e especialmente no porão. Cozinhávamos com a madeira de cenários que estavam nos fundos, todos se ajudavam como podiam.”
Sem camas ou colchões, por mais de 10 dias as pessoas dormiam sentadas na plateia. “Todas as cadeiras ficaram ocupadas, o palco, os corredores. Mulheres com crianças podiam ficar num corredor estreito que parecia ser mais seguro, por ser afastado das janelas.”
Segundo Natalia, ao menos 1.500 pessoas ficaram presas ali, sem poder sair devido a ataques que não cessavam. “Não havia água para limpar o banheiro, as privadas entupiram. A vida virou um inferno.”
O ar nas áreas mais fechadas ficou insuportável, e as pessoas começaram a buscar abrigo mais próximo das saídas. Uma barricada com móveis foi erguida para proteger as pessoas contra estilhaços. Para garantir que crianças e mulheres pudessem estar na área da frente com segurança, veio a ideia de escrever a palavra “criança” no chão da calçada do teatro, com tintas que estavam no teatro.
No dia 16, Volodimir estava cansado. Achou um livro e decidiu ir ler próximo à porta. Natalia e Ieva preferiram ficar no interior, acompanhando Viktoria, que não se sentia bem com o frio -a umidade da respiração das pessoas condensada nas janelas congelava, formando uma camada de gelo.
Pouco depois de o genro sair, uma explosão atingiu o entorno do prédio. Natalia perdeu a consciência e só se lembra de quando acordou ouvindo gritos e choros, a voz da filha chamando por seu nome. E o frio.
“Eu não lembrava onde estava, o que estava acontecendo naqueles dias. Pensava apenas em tentar proteger minha filha e minha mãe. Quando me lembrei de tudo, senti muita dor, minhas pernas pareciam pedaços de carne, meu braço estava ferido. Achei que minha vida terminaria ali.”
Logo a ajuda apareceu, os mais feridos foram levados ao hospital. Ieva e Viktoria não haviam se ferido, e isso tranquilizava Natalia. “Alguns homens me levantaram com um lençol e me levaram até um carro. Havia muitos mortos, o teto do teatro não existia mais, o teatro estava partido em duas partes.”
A Rússia nega ter atacado o local e diz que não mira alvos civis. Não houve, até aqui, uma verificação independente de quantas pessoas estavam abrigadas no local, quantas foram resgatadas e quantas morreram.
No hospital, especializado em cardiologia, os médicos disseram que com a estrutura do local não podiam ajudar Natalia. Pouco depois, um veículo militar russo chegou com soldados feridos, a quem os médicos afirmaram o mesmo -e então foram ameaçados. “Minha filha conseguiu convencer os russos a levarem o colega ferido e a mim para o hospital N3, de emergência. Eles concordaram, mas disseram a Ieva que, se o soldado morresse, me matariam também.”
Lá, só o que foi possível fazer foi colocar bandagens para tentar estancar os sangramentos. Os médicos disseram que poderiam apenas tentar amputar a perna de Natalia -e que mesmo assim não garantiam que ela sobreviveria.
Três dias se passaram até que um grupo de voluntários aceitou se arriscar para levá-la. “As ruas estavam destruídas, e todos os tipos de bombas continuavam sendo lançadas contra a cidade.”
Em uma van com outros pacientes, Natalia foi até Berdiansk, onde precisou deixar a mãe, já muito doente, em um abrigo. Depois, no caminho até Zaporíjia, ela conta que o veículo não teve problemas nos postos de controle. “Os soldados russos não conseguiam olhar nos meus olhos, nas minhas feridas. Eles deviam sentir vergonha, eu podia ser a mãe deles.”
No hospital, acompanhada da filha, ela não sabe se a mãe ainda está viva. O paradeiro de Volodimir é desconhecido até hoje.